O profícuo

Meses atrás, um encontro no metrô fez Gustavo Pinheiro pensar. O dramaturgo de 44 anos esbarrou com um conhecido e dele ouviu um comentário sobre sua trajetória no teatro: “Nossa, como você teve sorte!” “Aquilo me pegou tão de surpresa que não consegui responder nada. Ele foi embora, e eu fiquei com aquele ‘sorte’ [na cabeça]”, disse ele à piauí. Era como se o seu interlocutor tivesse creditado ao acaso o trabalho de uma década nos palcos, com espetáculos que, desde 2022, atraíram uma média de 100 mil espectadores por ano, segundo seus cálculos. Nos últimos 9 anos, foram 9 textos inéditos e 2 adaptações, sempre com ampla divulgação e atores conhecidos. A última produção na lista de sucessos recentes é a comédia dramática Dois de Nós, produzida e estrelada por Antonio Fagundes, que estreou em setembro do ano passado em São Paulo, e, em pouco mais de três meses, já tinha sido vista por mais de 30 mil pessoas. Para este ano, ele já tem confirmados onze textos seus nos palcos, entre inéditos, traduções, esquete e turnês de realizações anteriores. “Tem autor que não tem nem isso escrito, né? Muito menos montado”, observa Fagundes à piauí.  The post O profícuo first appeared on revista piauí.

Jan 26, 2025 - 13:42
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O profícuo

Meses atrás, um encontro no metrô fez Gustavo Pinheiro pensar. O dramaturgo de 44 anos esbarrou com um conhecido e dele ouviu um comentário sobre sua trajetória no teatro: “Nossa, como você teve sorte!” “Aquilo me pegou tão de surpresa que não consegui responder nada. Ele foi embora, e eu fiquei com aquele ‘sorte’ [na cabeça]”, disse ele à piauí. Era como se o seu interlocutor tivesse creditado ao acaso o trabalho de uma década nos palcos, com espetáculos que, desde 2022, atraíram uma média de 100 mil espectadores por ano, segundo seus cálculos. Nos últimos 9 anos, foram 9 textos inéditos e 2 adaptações, sempre com ampla divulgação e atores conhecidos.

A última produção na lista de sucessos recentes é a comédia dramática Dois de Nós, produzida e estrelada por Antonio Fagundes, que estreou em setembro do ano passado em São Paulo, e, em pouco mais de três meses, já tinha sido vista por mais de 30 mil pessoas. Para este ano, ele já tem confirmados onze textos seus nos palcos, entre inéditos, traduções, esquete e turnês de realizações anteriores. “Tem autor que não tem nem isso escrito, né? Muito menos montado”, observa Fagundes à piauí

Eduardo Barata, produtor cultural e presidente da Associação dos Produtores de Teatro (APTR), diz não se lembrar de uma situação parecida, “ainda mais um autor vivo”. 

 

Com um jeito simpático que combina com sua experiência na área de relações públicas, tem sido requisitado diretamente por atores, casos de Ana Beatriz Nogueira, Regina Braga e Gabriel Braga Nunes, que recorreram ao dramaturgo solicitando um texto inédito.

Filho de um médico e uma dona de casa, a trajetória do dramaturgo começou em 2010, quando completou 30 anos em meio a uma crise profissional. Jornalista de formação, ele trabalhou na agência de comunicação FSB durante anos atendendo clientes do meio literário e gastronômico. Em paralelo, alimentava o sonho de escrever ficção. “Quando vi [a série americana] Breaking Bad, falei: ‘É isso que eu quero fazer da minha vida, quero fascinar as pessoas com histórias.’”

Pouco tempo depois, ele pediu demissão da FSB, sem ter nenhum outro emprego em vista. “Foi louco, porque eu ganhava dinheiro, prêmio, era bem reconhecido, meus clientes me adoravam e os jornalistas, também. Todo mundo falava: ‘ninguém vende pauta [para a imprensa] como você, você é muito criativo’. E eu respondia: ‘Mas não é mais isso…’”

Livre do emprego formal e com tempo para se dedicar à dramaturgia, resultado das economias que havia guardado, foi emendando um curso atrás do outro. Roteiro, dramaturgia, criação de personagem. Aprendeu com quem já produzia para tevê e cinema, entre roteiristas e autores de novelas: David França Mendes, Lucas Paraizo, Jorge Furtado, Thelma Guedes e Jaqueline Vargas. 

Concluiu ainda um concorridíssimo curso de desenvolvimento de séries para tevê que a Universidade Columbia ofereceu no Rio, em meados de 2014, e uma formação em Nova York com o roteirista Robert McKee. Entre seus discípulos estão Peter Jackson (da saga O Senhor dos Anéis) e Jane Campion (O Piano e Ataque dos Cães). Por lá, aprendeu que, apesar de não existir uma fórmula para um roteiro de sucesso, existem, sim, alguns métodos para criar. E isso seria comprovado, dizia o veterano, por 90% das histórias do cinema americano: todas elas possuem começo, meio e fim, temperadas por pontos de virada.“Mas é aquilo que todo mundo fala: leia tudo, depois deixe de lado e crie o seu”, acredita o pupilo brasileiro.

A estreia do seu primeiro texto no teatro ocorreu em 2016. Ele foi impactado, no ano anterior, por um anúncio no Facebook sobre um concurso de dramaturgia do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), o “Seleção Brasil em Cena”, destinado a novos autores. 

 

Decidiu botar no papel uma história sobre a qual já vinha pensando: um coronel doente que se reúne com os quatro filhos no hospital para discutir aspectos da sua vida: estão ali um dentista militar aposentado, um empresário que trabalha em uma empreiteira investigada por corrupção, um jovem usuário de drogas em busca da reabilitação e um jornalista em crise com a profissão. Todos carregam aspectos da polarização política no país iniciada com as manifestações de Junho de 2013 e o Fla X Flu eleitoral protagonizado pelo tucano Aécio Neves e a petista Dilma Rousseff na eleição presidencial de 2014.

Intitulado A Tropa, o texto venceu outros 250 concorrentes na edição carioca. “Foi o trabalho que mudou minha vida”, lembra Pinheiro. O prêmio era a montagem do espetáculo. Para convidar o veterano Otávio Augusto (de Vamp, Tieta, entre outros) para o papel de patriarca do clã, o autor lançou mão de um expediente da época de assessor: uma dose de cara de pau. Eles não se conheciam, mas o dramaturgo descolou o contato do ator com um jornalista, ligou e vendeu seu peixe. Augusto concordou em ler o texto premiado, e, dois dias depois, aceitou fazer a peça.

O espetáculo estreou em março de 2016, no CCBB. Ao final da temporada carioca, ele pagou a equipe e investiu sua parte do cachê para montar a peça em outras cidades. “Pensei: ‘isso aqui precisa ser sustentável para eu conseguir ser visto.’ É a minha lojinha agora, o meu produto. Senão é como editar um livro e ficar com ele guardado.”

Durante a temporada paulista, em 2017, o crítico da Folha de S.Paulo Nelson de Sá escreveu: “Não que o jovem Gustavo Pinheiro seja um dramaturgo pronto ou que sua peça possa ser comparada àquelas de Gorki ou Brecht, mas é espantosa a capacidade que demonstra para expressar as divisões mais recentes na sociedade brasileira.”

Uma década e um total de quase 60 mil espectadores depois, A Tropa segue em cartaz: neste ano sairá em turnê pelo Nordeste e terá datas em São Paulo.

Além da resenha calorosa, outro momento importante ocorreu em solo paulistano. Um ilustre espectador gostou do que viu no palco do Teatro Sérgio Cardoso. Depois de assistir à peça, Fagundes entrou em contato, e os dois iniciaram ali uma amizade que, anos depois, resultaria em Dois de Nós, que já foi vendida para seis países – Argentina, Uruguai, Chile, Paraguai, Espanha e México.

Em cena, dois casais de diferentes gerações repassam seus dilemas, comuns à vida a dois: rotina, filhos, dinheiro, ambições profissionais, e todas as expectativas e frustrações que podem resultar de uma relação conjugal.

“O texto dele é rico em referências sociais e psicológicas e levanta discussões sobre tabus de uma forma absolutamente espontânea, sem ser panfletário e, ao mesmo tempo, fazendo a plateia ouvir em silêncio. Isso é um mérito extraordinário”, elenca Fagundes. Para ele, Pinheiro consegue criar boas narrativas sem que para isso o espetáculo seja complexo demais. “Tem muita gente querendo inovar antes de comunicar. Eu prefiro a comunicação sempre, e para o maior número de pessoas.” 

Outro elogio feito ao dramaturgo está no fato de que seu texto é coloquial, com referências do dia a dia, que “entra na boca do ator com naturalidade”, segundo Fagundes. Ana Beatriz Nogueira corrobora: “O texto tem uma boa embocadura, é redondinho”.

O ator afirma que o dramaturgo absorve as ideias de pessoas que estão em volta, como atores, produtores e diretores. A opinião é compartilhada por Lilia Cabral, protagonista de A Lista, outro sucesso recente. “Eu falava: “Ah, Gustavo, você não acha melhor usar essa frase, por ser mais forte? Ele ouve e faz considerações. Há uma troca espontânea. Ele é acessível e generoso, o autor que toda atriz gosta de ter.” 

A Lista começou a ser escrita em 2019, quando a filha de Lilia Cabral, a atriz Giulia Bertolli, procurou Pinheiro para encomendar um texto em que contracenasse com a mãe. Veio a Covid e a criação foi paralisada. Em paralelo, Nogueira encampou uma iniciativa para produzir peças online a fim de ajudar profissionais que estavam em dificuldade por causa das salas fechadas e produções adiadas. 

Ela encomendou a Pinheiro um texto de produção simples, de preferência um solo, de modo a não violar as restrições sanitárias. Como Lilia e Giulia quarentenavam no mesmo apartamento, ele sugeriu uni-las em um espetáculo que narra a interação de duas vizinhas, a jovem Amanda e a aposentada Laurita, ambas moradoras de Copacabana. Elas começam a se visitar no auge da pandemia e das fake news sobre a doença. O trabalho recebeu três indicações ao Prêmio Bibi Ferreira (2022), incluindo a de Melhor Dramaturgia na categoria Peça Teatral.

“Chamaram a atenção a qualidade do texto e a contemporaneidade da dramaturgia”, recorda Marllos Silva, idealizador da premiação e um dos jurados. “A construção dos diálogos [em A Lista], cheios de agilidade, também é muito interessante.”

A peça, inicialmente com pouco mais de 40 minutos, foi assistida por mais de 140 mil pessoas online. Quando a pandemia arrefeceu e os teatros reabriram, Pinheiro escreveu um novo ato para incrementar a história de Laurita e Amanda. No novo adendo, acontece um salto para o futuro, e a dupla se reencontra pós-Covid, em uma espécie de acerto de contas que mostra como uma influenciou a outra. O texto está em cartaz no Teatro Carlos Gomes no Rio até o começo de fevereiro, e tem uma turnê pelo país programada para este ano.

“Quando a peça é universal e sabe falar de sentimentos sem rodeios, as pessoas se identificam. Não é porque se passa no Rio de Janeiro, em Copacabana, seja lá onde for”, afirmou Lilia Cabral à piauí poucos dias após uma sessão lotada para mais de 2 mil pessoas no Teatro Guaíra, em Curitiba, em novembro do ano passado. 

O sucesso fez com que a história fosse adaptada pelo núcleo de filmes da Globo para virar um longa-metragem, com previsão de estreia para este ano e tendo Cabral e sua filha como protagonistas. 

As adaptações dos seus trabalhos para tevê e cinema têm sido cada vez mais recorrentes. Além da A Lista, peças como A Tropa, Dois de Nós e Antes do Ano que Vem, esta última um monólogo sobre saúde mental protagonizado por Mariana Xavier e dirigido por Lázaro Ramos, devem ter o mesmo destino. O autor afirma estar negociando com produtoras. 

Nos textos de Pinheiro abundam os dilemas cotidianos em dramas regados a conflitos geracionais. Uma montanha-russa de emoções que ele diz perseguir. Muitos, e até o próprio, citam como influências a obra de Mauro Rasi (1949-2003), criador de Pérola e Batalha de Arroz num Ringue para Dois, e a dramaturgia de Miguel Falabella, que, entre outros sucessos, escreveu e dirigiu A Partilha. “Eles falam de família e de mulheres fortes. Essa é totalmente a minha onda”, confessa.

Diretor de A Lista e parceiro em pelo menos quatro outros projetos, o ator e diretor Guilherme Piva enxerga na produção do dramaturgo a capacidade de preencher uma lacuna na cena teatral brasileira contemporânea. 

Para ele, nas últimas quatro décadas, privilegiou-se outros tipos de texto, a começar pelos grandes clássicos estrangeiros. Depois, o Teatro Besteirol de autores como Vicente Pereira e Naum Alves de Souza, com “uma crítica ácida e inteligente, um tipo de humor que veio mexer com a dramaturgia”. Em seguida, as comédias dramáticas, que funcionam como uma crônica “retratando um pouco a classe média, a vida como ela é”. Por fim, o “ciclo de encenadores”, cujo foco estava mais no diretor do que no texto. “Sem julgamento nenhum, mas aquele estilo [das crônicas do cotidiano] ficou um pouquinho de lado. O Gustavo [Pinheiro] retoma esse movimento.”

O teatro brasileiro teve produções de destaque no ano passado. Fernanda Montenegro entrou para o Guinness World Records ao promover uma apresentação de A Cerimônia do Adeus, texto de Simone de Beauvoir, para mais de 15 mil pessoas no Auditório do Ibirapuera, em agosto. Também em São Paulo, no Teatro Porto Seguro, o espetáculo Rita Lee – Uma autobiografia musical estreou em março do ano passado e foi prorrogado até dezembro. Uma nova temporada começa em 31 de janeiro e vai até 16 de março, mas todos os ingressos já estão esgotados. 

Outras produções tiveram êxito, como o musical Tarsila, a brasileira, protagonizado por Claudia Raia, que ficou em cartaz entre janeiro e junho, e o monólogo Não me Entrego, Não!, do nonagenário Othon Bastos, com apresentações entre junho e dezembro, ambos na ponte Rio-São Paulo. 

Alguns fatores podem ajudar a explicar a boa fase. Barata, o produtor cultural, destaca o fim da pandemia. Depois da quarentena, o público saiu ávido por experiências ao vivo, seja em shows ou espetáculos artísticos. Para ele, no isolamento também houve, paradoxalmente, um movimento de formação de um novo público, de pessoas que nunca tinham ido ao teatro, mas que tiveram contato com expressões artísticas através das redes sociais. Pinheiro acredita que, diante das incertezas no audiovisual e na teledramaturgia, muitos atores estão se reinventando nos palcos. “Em um momento em que as emissoras [de tevê] estão sem contrato fixo, os atores foram para o teatro.”

Disposto a aproveitar a boa fase, Pinheiro está sempre atrás de um novo texto. Um dos seus principais investimentos são as viagens anuais, às vezes semestrais, para Nova York. O ritual é assim: ele espera o dólar baixar, junta uma boa safra de espetáculos e faz até duas sessões por dia na Broadway, de terça a domingo. 

No ano passado, foi uma vez no Carnaval e outra em junho. Apesar do dólar nas alturas, voltou novamente em dezembro. Do que viu em solo norte-americano, gostou (e adquiriu), em parceria com Nogueira, os direitos de Dúvida, cuja pré-estreia está prevista para agosto, no Rio, sob sua tradução. A peça se passa em uma escola católica nos anos 1960, quando uma freira confronta um padre carismático ao suspeitar de abusos e outras más condutas. A história foi adaptada ao cinema em 2008 e protagonizada por Meryl Streep e Philip Seymour Hoffman.

Entre projetos prontos e outros em desenvolvimento, Pinheiro acredita que tudo tem seu tempo. Prevê estrear no fim do ano a peça Ney, centrada em Ney Matogrosso e no show histórico dos Secos & Molhados no Maracanãzinho, em 1974. Não se trata de um musical, mas ele tem planos de entrar no segmento. “Se for pra ser, vai ser”, profetiza, antes de concluir que talvez precise, sim, dar algum crédito ao colega que encontrou no metrô. “Mas dou muita sorte. Porque, além de todo o trabalho, tem uma conspiração a favor.”

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