Crítica | Ainda Estou Aqui (2024): em tempos de esquecimento, lembrar é resistir
Walter Salles aborda as feridas deixadas pela repressão militar no Brasil através de uma narrativa íntima, ancorada na força de uma família despedaçada. O post Crítica | Ainda Estou Aqui (2024): em tempos de esquecimento, lembrar é resistir apareceu primeiro em Cinema com Rapadura.
O cinema tem o poder de traduzir traumas coletivos em histórias pessoais, e é exatamente isso que Walter Salles (“Central do Brasil”) faz em “Ainda Estou Aqui”. A obra revisita um dos capítulos mais sombrios da história brasileira, embora se afaste do didatismo sobre a época. O cineasta opta por mergulhar na história de uma família que teve a vida atravessada pela tirania do regime militar, ao mesmo tempo em que convida o público a refletir sobre como a ausência e o silêncio são marcas duradouras nas vidas daqueles que permanecem.
A obra abre com uma aura de normalidade quase idílica que captura o espectador. A casa à beira-mar da família, inundada por luz natural e ao som de música popular brasileira, é palco de momentos simples como risadas, brincadeiras infantis e conversas sem pressa. O diretor não se priva de gastar bons minutos nessa construção para não apenas gerar um impacto maior quando a paz é interrompida, como também aproximar o público a ponto de nos colocar como parte daquela família. Selton Mello, como Rubens Paiva, traz uma presença marcante mesmo com tempo limitado em tela. Sua interpretação humaniza a figura histórica, mostrando-o como um pai afetuoso e um cidadão que acreditava na possibilidade de um país livre.
Quando os militares invadem a narrativa e levam Rubens sob custódia, “Ainda Estou Aqui” passa por uma transformação lenta e impiedosa. A leveza, tão genuína, logo dá lugar à tensão. A casa, antes acolhedora, torna-se um espaço opressor, entranhado pela ausência e pela incerteza simbolizando a quebra da rotina. Sem explicações ou notícias, a esposa, Eunice (Fernanda Torres), precisa equilibrar o peso do desgosto e da aflição com a necessidade de proteger os filhos. A falta de Rubens é sentida por toda a obra, fazendo com que o público sinta o vazio deixado por ele.
A atuação de Fernanda Torres vai além de meras palavras, expressando a dor e a resiliência de uma mulher forçada a enfrentar uma luta inimaginável. Seu sofrimento é silencioso, mas devastador. Sentimos nos olhares, nos gestos e nas pausas que evidenciam, principalmente, a angústia de não saber o destino do esposo. Mais do que um trabalho formidável, trata-se também de uma homenagem, não apenas à própria Eunice Paiva, mas a todas as mulheres que, durante a ditadura, enfrentaram perdas profundas e continuaram lutando por justiça.
Salles opta por não se aprofundar em explicações históricas detalhadas sobre o contexto político, preferindo focar na experiência íntima da família. Não por acaso, “Ainda Estou Aqui” se beneficia do conhecimento prévio do espectador, que complementa o que está sendo mostrado em tela. Quando Eunice e uma das filhas são levadas para interrogatório, sabemos o que acontece ali. Além de poupar o público da violência gratuita, não mostrar cenas de tortura explícita contribui para a aura de tensão tanto ou até mais do que exibi-las. Não é preciso explicar a ditadura para quem a viveu — ela se faz presente no medo constante e nas implícitas e explícitas formas de violência.
Outro elemento de destaque no filme é a construção espacial da casa da família. A forma como a câmera explora os cômodos, com tantas memórias impregnadas nas paredes, cria um senso de familiaridade com o ambiente, e isso faz com que a virada seja ainda mais impactante. Quando Rubens é levado, o espaço se encolhe, as cores se apagam e o peso da ausência toma conta do lugar, despedaçando aquele cotidiano agradável que nos acostumamos até então. E quando pensamos que não havia mais o que extrair desse conflito, Salles mostra a família deixando a casa para trás e nos leva para diferentes momentos no futuro, constatando de forma terna e melancólica que, apesar de tanto sofrimento, a vida segue seu curso.
O momento final, em que Eunice reage ao ouvir a palavra “ditadura”, é uma das cenas mais poderosas do filme. Fernanda Torres dá lugar à sua mãe, Fernanda Montenegro, que em uma breve aparição manifesta, apenas com o olhar, a dor de uma ferida que permanece aberta, lembrando um passado que não deve ser esquecido. A sequência reforça a importância da História (com “H” maiúsculo) para garantir que tais feridas nunca sejam ignoradas ou esquecidas.
“Ainda Estou Aqui” extrapola o mero relato histórico. A obra propõe uma reflexão sobre as consequências da repressão de um regime ditatorial. Mais do que isso, é também um tributo à força das famílias que se mantiveram firmes e um lembrete de que recordar é, acima de tudo, um ato de resistência. Em um país onde o passado ainda ecoa no presente, o sucesso do longa é marcante na construção de um futuro que valorize a verdade e a memória.
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