Crítica | Coringa: Delírio a Dois (2024): mergulho tortuoso em uma mente destruída

Embora falho em certos pontos, longa acerta ao retratar a mente fragmentada e corroída de seu protagonista carente de afeto. O post Crítica | Coringa: Delírio a Dois (2024): mergulho tortuoso em uma mente destruída apareceu primeiro em Cinema com Rapadura.

Jan 26, 2025 - 17:49
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Crítica | Coringa: Delírio a Dois (2024): mergulho tortuoso em uma mente destruída

Deixando de lado todo o burburinho sobre “Coringa: Delírio a Dois” desde antes mesmo da sua estreia oficial, é possível admitir que o filme está longe de ser a continuação que os fãs esperavam sem que isso seja, necessariamente, algo ruim. A ambiguidade e o desconforto que ele causa são, de certa forma, parte da experiência que o longa tenta proporcionar.

Em termos de narrativa, o filme começa de forma arrastada, refletindo a falta de propósito do protagonista ao ser mantido por dois anos internado no Asilo Arkham enquanto aguarda julgamento. As cenas vão passando e parecem não ter muito a dizer, embora seja o próprio Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) que se encontre resignado após sua jornada de assassinatos e instauração do caos vista no fim do longa anterior. Até que o surgimento de Lee Quinzel (Lady Gaga) acontece como uma faísca capaz de mudar a vida do personagem-título.

A relação entre os dois parece começar de forma abrupta, mas faz sentido quando se pensa no histórico do personagem. Arthur sempre teve um padrão de criar conexões imaginárias, sobretudo com mulheres — algo citado mais à frente no seu julgamento. Tendo em vista as fantasias com a sua vizinha, Sophie Dumond (Zazie Beetz), no primeiro filme, faz sentido que ele se apegue rapidamente a Lee como uma nova figura de esperança após todo o isolamento no Arkham. O desenvolvimento dessa relação, que pode ser visto como apressado, revela-se mais como uma extensão da carência e da solidão do protagonista do que, de fato, um romance genuíno. Ela é, para ele, uma nova fantasia de escape que o faz não abdicar de viver.

Claro que quando um filme protagonizado por Coringa e Arlequina é anunciado, ainda mais com o título “Delírio a Dois”, expectativas se formam quase involuntariamente. Mas é aí que o que deveria ser uma exploração psicológica densa de Arthur Fleck e Harley Quinn pode acabar se mostrando uma experiência frustrante exatamente por ignorar esse potencial. A própria personagem interpretada por Lady Gaga, por mais tempo de tela que possua, existe apenas em função de trazer à tona a personalidade do Coringa, até então ao que parece oculta no interior de Arthur.

A tentativa de balancear o drama com as tão malfaladas performances cantadas resultam em um musical que desperta pouco interesse. Nenhuma dessas cenas se destaca, falham em cativar, e mais parecem um artifício para “estilizar” um conteúdo que, no fim das contas, não precisava desse excesso. Ainda assim, não é por acaso que grande parte do desenvolvimento da relação entre Arthur e Lee acontece em sequências musicais. Dessa forma, além de aproveitar o talento natural de Lady Gaga, o roteiro reafirma que o foco da narrativa é o que está se passando na mente do protagonista e como isso reflete do lado de fora dele. Uma cena que merece destaque é quando Arthur, exausto de tanto faz-de-conta enquanto nega a própria existência do Coringa, pede a Lee que pare de cantar e apenas fale. Esse pequeno gesto encapsula o desespero dele por algo real em meio a uma vida dominada por delírios e fantasias fabricadas. Isso repercute a própria estrutura do filme: um amontoado de performances, canções e ilusões que mascaram a realidade de um homem destruído.

Além da famigerada opção de transformar “Delírio a Dois” em um musical, outro ponto amplamente debatido são as cenas no tribunal. Embora essa parte tome várias liberdades, exagerando no drama típico de julgamentos, é nesse contexto que algumas questões fundamentais sobre o personagem vêm à tona. A primeira é a ideia de que o Coringa, enquanto figura pública, funciona como um agente do caos, mas por trás da maquiagem, há alguém com a mente atormentada, cuja maior carência é emocional. Isso fica visível, por exemplo, na recorrente preocupação de Arthur sobre se o filme que fizeram sobre ele foi “bom” ou não. É um momento que pode pintá-lo como ególatra, mas ao mesmo tempo revela uma ingenuidade e uma necessidade desesperada de validação. Ele não quer ser apenas o caos — quer ser compreendido, quer ser alguém.

Outro momento importante é quando sua vizinha relata a todos que a história contada pela mãe de Arthur — de que ele tinha como propósito de vida trazer alegria às pessoas — era uma invenção. Para o protagonista, essa revelação é devastadora, pois ele havia construído toda a sua identidade em torno dessa mentira. Esse momento reforça que, para além da negligência social e institucional que sempre o cercou, o verdadeiro mal que o assola está profundamente enraizado em sua mente fragmentada. Ele não só foi abandonado pela família e pela sociedade, como ainda sofre com uma falta total de ferramentas emocionais para lidar com isso. Nesse sentido, o filme nos leva a uma reflexão mais ampla sobre as condições mentais que ultrapassam o descaso institucional. Arthur não é apenas um produto do ambiente caótico de Gotham, mas de uma mente tão deteriorada que a incapacidade de sentir qualquer coisa boa se tornou sua maior prisão.

Se a jornada de transformação do protagonista é o ponto alto do primeiro filme, em “Delírio a Dois” a evolução do personagem ao assumir novamente a identidade do Coringa é tão impactante quanto. A ideia de que a figura do palhaço é, no fundo, uma persona que lhe proporciona um misto de prazer e anestesia contra a dor e a falta de amor é particularmente interessante. Ao cometer os cinco assassinatos, Arthur “se encheu” dessa personalidade, usando-a quase como uma droga para mascarar essa carência por afeto. No novo longa, testemunhamos um processo análogo a um dependente em abstinência aos poucos cedendo novamente ao vício. À medida que o Coringa vai “assumindo o lugar” de Arthur mais uma vez, somos levados a crer que uma nova catarse se aproxima. É aí que Todd Phillips entrega um ponto de ruptura surpreendente, quebrando de vez o espírito do personagem principal.

A partir daí, o que vemos é um desfecho irônico e cruel para alguém carente de propósito e reconhecimento. Arthur passa de um homem que desejava desesperadamente ser notado — vide as apresentações no primeiro longa e as cenas musicais no segundo — a alguém descartado pelas circunstâncias e manipulado até o último momento. Esse ciclo de autodestruição e submissão ao caos atinge seu ápice em um dos raros momentos em que Gotham surge além dos cenários do Arkham e do tribunal — diferente do filme anterior, no qual a cidade era praticamente uma personagem. Perseguido por um seguidor fantasiado de Coringa, estabelecemos um paralelo direto com o bullying que Arthur sofria anteriormente. Agora, ele foge não de opressores, mas dos seus próprios “fãs”, refletindo o impacto de sua figura carismática na cidade e no caos que ele incita sem nem querer.

“Coringa: Delírio a Dois” pode não ser uma obra-prima. Mas, principalmente em sua metade final, o longa consegue desnudar o verdadeiro peso das questões internas do personagem-título. Se no primeiro filme vemos como esse agente do caos espalhou anarquia por Gotham, agora pudemos ter um vislumbre do caos dentro do próprio protagonista.

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