Cobras no telhado

Reza uma antiga lenda maranhense que uma serpente encantada habita as galerias subterrâneas do Centro Histórico de São Luís. Com um apetite insaciável, o gigantesco réptil devora qualquer animal que cruze seu caminho, e assim vem crescendo lentamente ao longo de séculos. De acordo com o mito, o corpo colossal da serpente se estende por baixo de três marcos históricos da capital maranhense. Sua cabeça repousa na Fonte do Ribeirão, onde há uma entrada para as galerias subterrâneas. A cerca de 300 metros, sua barriga descansa abaixo da Igreja Nossa Senhora do Carmo. A cauda estaria enroscada nas fundações da Igreja de São Pantaleão, a 1 km de distância da cabeça.  The post Cobras no telhado first appeared on revista piauí.

Jan 31, 2025 - 15:51
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Cobras no telhado

Reza uma antiga lenda maranhense que uma serpente encantada habita as galerias subterrâneas do Centro Histórico de São Luís. Com um apetite insaciável, o gigantesco réptil devora qualquer animal que cruze seu caminho, e assim vem crescendo lentamente ao longo de séculos.

De acordo com o mito, o corpo colossal da serpente se estende por baixo de três marcos históricos da capital maranhense. Sua cabeça repousa na Fonte do Ribeirão, onde há uma entrada para as galerias subterrâneas. A cerca de 300 metros, sua barriga descansa abaixo da Igreja Nossa Senhora do Carmo. A cauda estaria enroscada nas fundações da Igreja de São Pantaleão, a 1 km de distância da cabeça. 

A lenda carrega um presságio sombrio: quando a cobra atingir o tamanho máximo, sua cabeça finalmente encontrará sua cauda. Sem ter mais espaço para crescer, ela emergirá das profundezas da terra, causando um terremoto arrasador que irá afundar toda a ilha de São Luís. 

 

Próximo ao local onde se oculta a cabeça da serpente encantada, um dos centros comerciais mais tradicionais da capital já abrigou ofídios mais prosaicos no passado recente, até o começo da pandemia de Covid. No Mercado das Tulhas, acima de moradores e turistas que circulavam pela feira em busca de produtos artesanais – cachaças, geleias, peixe e camarão secos –, rastejavam dezenas de jiboias.

 

O mercado ocupa o coração do projeto Reviver, que em 1987 restaurou o patrimônio arquitetônico do Centro Histórico, na região da Praia Grande. Mas reformas urbanas não bastam para expulsar uma praga comum do comércio de alimentos: os ratos. Em meados de 2014, dois comerciantes tiveram uma ideia ousada para controlar a população de roedores. Maurício e Ubiracy Sampaio, pai e filho, soltaram cobras no teto do mercado.

O feirante Raimundo Costa, conhecido como Corintiano, lembra que seus colegas colocaram cerca de vinte jiboias no espaço entre a laje e o telhado. Deu resultado. “Naquela época, nós ganhamos várias competições de feira mais limpa de São Luís, mas ninguém sabia que era por causa das cobras”, relata o comerciante que há 35 anos trabalha no Mercado das Tulhas. 

As jiboias se reproduziram. Um dos mais antigos feirantes da Praia Grande, Ubiracy, o Bira, conta que o mercado chegou a abrigar aproximadamente cinquenta serpentes. Era ele quem manuseava as cobras, recolocando-as na laje quando elas escapavam para o espaço dos comerciantes. Predadoras eficientes, as jiboias caçavam ratos, pombos e um ou outro gato azarado. De acordo com os comerciantes, nunca atacaram um cliente ou funcionário do mercado. 

As jiboias preferiam deixar seu esconderijo para buscar suas presas à noite. Mas às vezes os turistas que visitavam o mercado vislumbravam uma delas deslizando silenciosamente pelos telhados. Alguns se encantavam com a cena e tiravam fotos do animal. Outros fugiam, apavorados, o que é compreensível: algumas jiboias do mercado chegaram a medir perto de 3 metros.

Há 28 anos trabalhando no Mercado das Tulhas, o feirante Julio Cesar Araújo lembra que já levou um susto com os animais: “Foi um fato inusitado. Eu cheguei aqui em uma segunda-feira pela manhã, estava ajeitando a barraca, aí embaixo aqui do balcão, quando fui levantar um pano, tinham dois filhotinhos de jiboia.”

 

 

Apesar de recorrente no Brasil, o uso de cobras para combater roedores e outras pragas é ilegal desde 1967, quando entrou em vigor a Lei de Proteção da Fauna Silvestre. “A jiboia é uma serpente que, assim como outros animais, se alimenta de roedores, às vezes de invertebrados ou pequenos lagartos”, diz o biólogo Caio Vinícius de Mira-Mendes, especialista em répteis e professor da Universidade Estadual do Maranhão (Uema). “Se tem oferta de alimentos, elas estão lá.” Ele adverte, porém, que a convivência com as jiboias pode ser perigosa: “As serpentes não têm membros, não têm braços, não têm pernas, só tem a mordida para se defender. Então sim, podem acontecer acidentes.” A jiboia não é venenosa, mas sua mordida pode causar ferimentos sérios.

Na região urbana de São Luís, as cobras estão entre os animais com mais ocorrências de capturas pelo Corpo de Bombeiros Militar do Maranhão. Entre janeiro e novembro de 2024, foram registrados 1738 resgates de animais silvestres, sobretudo jiboias e sucuris. Em abril, uma jiboia foi encontrada no estacionamento de um supermercado na área nobre da cidade. Filmada por um cliente e publicada nas redes sociais, a captura do animal repercutiu na imprensa local. 

Além das jiboias, outros animais silvestres estão passando por uma difícil adaptação ao ambiente urbano, relata Mendes. “A gente está tendo a alteração do ambiente, com a fragmentação, o desmatamento de áreas naturais e a expansão urbana”, lamenta o biólogo. “Isso faz com que esses animais fiquem isolados, às vezes dentro de fragmentos de mata nos centros urbanos, e a gente acaba encontrando esses animais se deslocando ou até mesmo vivendo em áreas urbanas, onde tem a oferta de alimento.”

A inclusão de um animal em um ambiente urbano pode gerar desequilíbrios ecológicos, especialmente se ele acabar deixando a cidade para se inserir em um novo ecossistema. Caio Mendes lembra o caso das pítons nos Estados Unidos. No estado da Flórida, já foi moda ter essas serpentes de grande porte como animais de estimação. Muitos donos de pítons acabaram se cansando de seus pets exóticos, que então eram soltos na natureza. Foi necessário criar um programa de controle dessa espécie invasora na Flórida, para que elas não dizimassem a fauna local. 

Menos mal que as jiboias do Mercado das Tulhas são nativas do Maranhão. Ainda assim, sua presença em um local de comércio era irregular. Consultado pela piauí, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) afirmou, em nota, que nunca tomou conhecimento do caso. Informou ainda que a competência para autorizar a criação de animais silvestres é dos órgãos estaduais de meio ambiente. Os parâmetros são rigorosos: “O animal silvestre, para ter origem legal, precisa ser adquirido de criadouro autorizado pelo órgão responsável, devendo ter nota fiscal e certificado de origem.”

As jiboias, de todo modo, sumiram do Mercado das Tulhas entre 2019 e 2020, quando o lugar passou por uma reforma. Não se sabe para onde foram. Bira, que trouxe as primeiras serpentes para o mercado, acredita que elas tiveram destinos diversos: algumas teriam sido mortas por moradores de rua, enquanto outras ainda estariam no Centro Histórico de São Luís, escondidas nos telhados. 

Um terceiro contingente, especula o comerciante, pode ter buscado abrigo nas galerias subterrâneas onde vive a serpente encantada.

 

A lenda da cobra gigante deve ter nascido do mistério que cerca as galerias, segundo a historiadora Joelma Santos da Silva, professora do Instituto Federal do Maranhão. Esses túneis foram construídos em 1796 pelo então governador da província do Maranhão, Fernando António Soares de Noronha, para levar água potável à população e melhorar o saneamento da cidade. A região da Praia Grande, onde tanto o Mercado das Tulhas quanto a Fonte do Ribeirão se situam, foi uma área alagada até a segunda metade do século XVIII, pois para lá afluíam as águas de regiões mais altas da cidade.

Com uma vegetação formada principalmente por mangues, a área começou a ser aterrada em 1784 para a construção do Cais da Praia Grande. A instalação de fontes em diversos pontos da cidade também colaborou para o escoamento das águas – a própria Fonte do Ribeirão, situada na Rua dos Afogados, era a nascente de um rio.

A população de São Luís não sabia exatamente qual era a função das galerias, o que pode ter contribuído para a criação da lenda, diz Santos da Silva. “Creio que o barulho das águas correndo e de pequenos animais gerou todo tipo de lenda, de um imaginário de que ali teria um réptil”, diz a historiadora.

Mitos indígenas de cobras mágicas e lendas africanas e ibéricas devem ter confluído para a história da serpente subterrânea. Santos da Silva lembra, em particular, a cobra-canoa que percorria os rios, povoando as margens em sua passagem. Essa lenda era muito disseminada entre os povos indígenas que habitavam a amazônia maranhense.

Com sua trajetória misteriosa e silenciosa, a serpente habita o imaginário de São Luís. Em 2001, a cidade ganhou uma escultura em homenagem à lenda, criada pelo artista plástico Jesus Santos. Instalada na Lagoa da Jansen, a 4 km do Centro Histórico, a obra afundou no terceiro mês após sua colocação no espelho d’água da lagoa. Recuperada e restaurada na época, desde então foi esquecida pelo poder estadual. Já parcialmente submersa, a serpente à qual se atribuía o poder de destruir a ilha de São Luís continua afundando aos poucos nas turvas águas da lagoa.

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