Para um cérebro saudável, faça amigos – e não só sudoku

Em 2017, a revista científica britânica The Lancet divulgou um estudo com nove fatores de risco para que uma pessoa desenvolva demência. Em 2020, o número subiu para doze. No ano passado, foram catorze temas, com a inclusão de dois fatores nada intuitivos para o problema: colesterol ruim e perda de visão. A lista é longa, e dá a sensação de que os riscos estão por todos os lados, mas há uma maneira menos pessimista de encarar os dados: embora a hereditariedade tenha um peso nas doenças que afetam o cérebro, muita coisa pode ser feita ao longo da vida para preveni-las.  Entender como cada um dos catorze fatores de risco contribui para o desenvolvimento da demência é um bom passo para cuidar da saúde da mente. The post Para um cérebro saudável, faça amigos – e não só sudoku first appeared on revista piauí.

Fev 6, 2025 - 13:55
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Para um cérebro saudável, faça amigos – e não só sudoku

Em 2017, a revista científica britânica The Lancet divulgou um estudo com nove fatores de risco para que uma pessoa desenvolva demência. Em 2020, o número subiu para doze. No ano passado, foram catorze temas, com a inclusão de dois fatores nada intuitivos para o problema: colesterol ruim e perda de visão.

A lista é longa, e dá a sensação de que os riscos estão por todos os lados, mas há uma maneira menos pessimista de encarar os dados: embora a hereditariedade tenha um peso nas doenças que afetam o cérebro, muita coisa pode ser feita ao longo da vida para preveni-las.  Entender como cada um dos catorze fatores de risco contribui para o desenvolvimento da demência é um bom passo para cuidar da saúde da mente.

A hipertensão, por exemplo. Quem convive por décadas com pressão alta tem lesões discretas, mas progressivas, em vasos de todo o corpo, inclusive no cérebro. Com o passar do tempo, as micro-hemorragias comprometem o funcionamento da região. Além disso, não raro pessoas que apresentam esse problema crônico manifestam outras doenças como o diabetes, que também está na lista da Lancet. Juntos, esses problemas podem provocar um conjunto de manifestações denominado pelos médicos de “síndrome metabólica”, com um estado corporal constantemente “inflamado”, alterando o metabolismo e liberando substâncias tóxicas no organismo. 

 

O tabagismo, outro fator de risco, também entra nesse pacote que pode levar à síndrome metabólica, aumentando assim a chance de alguém desenvolver demência. O consumo de cigarro ao longo dos anos é altamente nocivo e leva à morte das células. Sem contar que a nicotina tem grande capacidade de provocar dependência, o que por si só pode configurar um transtorno de saúde mental.

Ter tido um traumatismo cranioencefálico em algum momento da vida é mais um fator de risco presente na lista, seja uma batida na cabeça em um acidente de bicicleta, por exemplo, sejam as frequentes pancadas na cabeça que um lutador de boxe leva ao longo de anos. Quem pratica esportes de contato por um tempo prolongado está sujeito a ter sequelas na cognição, pois os golpes nessa parte do corpo geram lesões que, se são graves ou recorrentes, afetam a estrutura do cérebro, com o rompimentos de vasos que alimentam o órgão de oxigênio. Quem não se lembra do caso de Maguila, morto em outubro, que foi diagnosticado com a chamada “demência do pugilista”?

Até morar numa grande metrópole repleta de carros e indústrias em vez de uma cidade bucólica e arborizada pode interferir na saúde cognitiva. Isso porque a poluição do ar é apontada na lista como fator de risco devido a partículas inaladas, apesar de ainda pouco se saber sobre as concentrações consideradas seguras quando se debate a preservação da saúde mental.

 

A lista da Lancet segue com o item “baixa escolaridade”. Mas o que ter ido menos à escola tem a ver com demência? Única brasileira a integrar a comissão da revista científica, a psiquiatra Cleusa Pinheiro Ferri, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), explica:

“A baixa escolaridade talvez seja o fator mais importante, por ter uma ação direta sobre as demais. O bom nível educacional, de uma maneira geral, abre portas e provoca estímulos que você vai ter durante toda a vida, aumentando sua reserva cognitiva, o que traz uma proteção quando se é mais velho, propiciando uma região neuronal mais rica. Quando se fala em saúde mental, é necessário ter uma oferta de estímulos ao longo da vida. Se você tem escolaridade, você lê, você é participativo, você tem acesso a trabalho, lazer, entre outras coisas. Até se a pessoa é afetada por alguma outra condição, como diabetes, por exemplo, vai tratar disso melhor, pois já terá ou buscará conhecimento sobre aquele assunto”, detalha a psiquiatra, que é coordenadora, junto ao Ministério da Saúde, do Relatório Nacional sobre Demência (ReNaDe), estudo mais abrangente sobre o tema no Brasil.

A especialista alerta, entretanto, que o horizonte não deve ser de desalento para aqueles que não tiveram acesso à educação durante a infância ou adolescência. “Em qualquer momento da vida, se você passa a cuidar do que foi menosprezado, você terá benefícios”, enfatiza Cleusa.

 

A explicação da médica ajuda a compreender o motivo de o isolamento social estar na lista da Lancet, assim como a perda auditiva e a perda visual. Há correlações entre eles.

“Tanto o déficit auditivo quanto o visual vão levando ao isolamento. Na medida que a pessoa não ouve ou não enxerga direito, ela participa menos. Se ela é menos participativa, não é tão estimulada e vai ter menos atividade intelectual e cognitiva”, resume a médica.

O relatório da Lancet mostra que há um aumento de até 30% do risco de demência a cada 10 decibéis de perda auditiva. O empenho para se identificar problemas crônicos de saúde o mais precocemente possível influencia consideravelmente o tratamento de futuros transtornos mentais. Um estudo recente realizado pela Universidade de Loughborough, no Reino Unido, que contou com a participação de 8.623 pessoas durante alguns anos, sugere que a perda de sensibilidade visual pode apontar indícios de Alzheimer doze anos antes de a doença ser diagnosticada. Um acúmulo de proteínas beta amiloide forma placas tóxicas que atingem primeiro regiões do cérebro ligadas à visão para posteriormente afetarem áreas correspondentes à memória. Alguns sintomas detectados são uma menor capacidade de ver contornos de objetos ou discernir algumas cores. Pessoas com Alzheimer também têm dificuldade de ignorar estímulos distrativos, não tendo controle sobre os movimentos oculares. 

“Não é de se estranhar que várias evidências recentes mostrem forte associação entre o dano ocular e o cerebral, afinal a retina é parte do sistema nervoso. As alterações na retina são um biomarcador importante do que está acontecendo, não apenas em relação ao Alzheimer (…). Em oftalmologia, até falamos que é como se a boa visão nutrisse o cérebro’’, destaca o oftalmologista Rubens Belfort Junior, do Departamento de Oftalmologia da Unifesp.

O especialista cita que um exame chamado OCT é capaz de detalhar características histológicas em pacientes com alguma deficiência cognitiva e cerebral. “É um exame fácil, não invasivo, que pode ser repetido quantas vezes quiser, feito inclusive pelo SUS.”

Para o oftalmologista, questões aparentemente básicas como acesso a óculos e a realização de cirurgias de catarata são resoluções importantes a serem tomadas, visto que não há ainda maneiras de prevenir problemas visuais mais graves que possam levar a um prejuízo cognitivo. 

“Individualmente, o erro que as pessoas cometem é não realizar exames preventivos, especialmente de glaucoma e diabetes ocular. Quanto mais velho, mais importante. A partir dos 50 anos é sempre indicado. (…) Já a falta de óculos é a causa mais importante de perda visual no Brasil. Depois disso, eu diria que é o baixo número de cirurgias de cataratas realizadas (…). Há pacientes que ficam isolados em casa, não fazem nada, a ponto de todos sugerirem que eles sofrem de Alzheimer. Aí você opera e eles mudam completamente, passam a fazer uma série de ações que antes diziam não ter condições por problemas neurológicos, mas a verdade é que eles só não enxergavam mesmo”, enfatiza Rubens Belfort. 

Um estudo liderado por pesquisadores do departamento de neurologia da Universidade de Qingdao, na China, acompanhou por mais de oito anos 300 mil indivíduos do banco de dados de saúde do Reino Unido (um dos mais completos do mundo). Ao final desse período, 3.226 tinham desenvolvido demência. O grupo de catarata não cirúrgica teve risco aumentado de demência e de doença de Alzheimer. Entre os integrantes do grupo saudável e aqueles do grupo com catarata que fizeram a cirurgia, o risco de desenvolver demência não aumentou. A pesquisa foi publicada em 2022.

O psiquiatra e psicogeriatra Lucas Martins Teixeira vem desenvolvendo na Unifesp um estudo sobre a associação entre déficits visuais e o desenvolvimento de demência em adultos com mais de 60 anos, algo inédito no Brasil, já que nos países de baixa renda ainda há poucas pesquisas sobre o tema. “No caso da catarata, a cirurgia não apenas corrige o problema como, muitas vezes, a visão da pessoa fica ainda melhor do que antes de ela manifestar o problema. Isso seria um fator protetivo para ela, que teria menos chances de desenvolver demência do que quem nunca teve catarata.”

 

Na última atualização da lista da Lancet, foi incluído ainda o colesterol LDL alto, que mostra uma gravidade maior quando se dá desde a meia idade. Isso porque sua presença em excesso no cérebro predispõe a infartos e acidentes vasculares cerebrais. Ele também precipita o acúmulo das proteínas maléficas beta amiloides, que são causadoras de Alzheimer.

Um fator não menos importante é o consumo excessivo de álcool, que predispõe a negligenciar outros aspectos da saúde, podendo contribuir com a depressão, a obesidade e o sedentarismo, outros causadores que foram considerados na análise da Lancet. Sem contar que determinadas demências são especificamente causadas pelo consumo de bebida alcoólica, como a Síndrome de Wernicke-Korsakoff, uma condição causada por déficit de tiamina (vitamina B1). O álcool reduz a capacidade do corpo de absorvê-la.

O ReNaDe mostra que a preponderância de um fator ou de outro muda de acordo com as faixas etárias. No Brasil, para adultos entre os 45 e 60 anos, os problemas mais presentes são hipertensão, obesidade, tabagismo, inatividade física e diabetes. Já acima dos 60, o diabetes ainda tem participação importante, mas a inatividade física, a depressão e o isolamento social também se destacam. O levantamento, no entanto, revela um dado otimista: numa situação hipotética, se houvesse uma redução de 10% da prevalência de cada fator por década, teríamos cerca de 600 mil casos a menos de demência até 2060.

O ideal é pensar a preservação da saúde mental de maneira holística, não atentando-se apenas a alguns desses fatores enquanto se ignora completamente outros, frisa a neurologista Sonia Brucki, do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP):

“É por isso que falamos de um estilo de vida que englobe alimentação, atividade física e atividades cognitivas. É importante ter uma dieta focada em menos alimentos processados e mais grãos, vegetais e legumes. (…) Enquanto que, sobre as atividades em geral, vale qualquer uma que faça você sair do seu cotidiano, do jogo de xadrez à jardinagem, passando pela ida à biblioteca. A partir do momento que você convive com ideias diferentes, discutindo assuntos com pessoas diversas, você é capaz de desenvolver mais sinapses cerebrais. Isso tudo ainda contribui para o aprimoramento emocional, aumentando a capacidade de lidar com adversidades. (…) Algo interessante que a gente já sabe é que pessoas com maior neuroticismo [traço de quem tende à instabilidade emocional e à negatividade], que ficam remoendo coisas e têm um pensamento mais negativo, estão menos abertas a novas experiências e têm mais chances de não ter uma boa saúde mental, e, consequentemente, de desenvolver demência”, destaca Sonia. 

Parte da população até tem consciência de que algumas ações praticadas ao longo do tempo são danosas à saúde física, mas parece ignorar que isso tenha interferência na saúde mental. Na classe médica, existe uma máxima: “O que é bom para o coração é bom para o cérebro.” Os hábitos são tão importantes que norteiam a chamada Medicina do Estilo de Vida (MEV), com origem na Universidade Harvard e fundamentada na ideia de que é possível prevenir e tratar problemas de saúde alterando alguns comportamentos simples, sempre com embasamento científico. Os seis pilares da MEV são: alimentação saudável, atividade física regular, controle de tabagismo e substâncias tóxicas, controle do estresse, qualidade do sono e conexões sociais.

Pós-graduada pela instituição americana e coautora do livro Psiquiatria do Estilo de Vida – Guia Prático Baseado em Evidências, a psiquiatra Ana Paula Lopes Carvalho exemplifica como desde muito cedo é possível adotar práticas benéficas ao bom funcionamento da mente.

“Sabemos que a atividade física e a alimentação são fatores que protegem o cérebro. Na infância, se estabelecem muitos hábitos que vão ser perpetuados na fase adulta, e dados mostram que crianças ativas têm maior chance de serem adultos ativos. O mesmo ocorre com a alimentação. Para que você passe a apreciar um alimento, você precisa conhecê-lo e experimentá-lo durante um tempo, isso determina padrões alimentares. E um grave problema atual é o consumo excessivo de ultraprocessados na infância, na adolescência e na juventude, já que eles são neurotóxicos, causando dependência e aumentando o risco de depressão e ansiedade. E isso não se daria num futuro longínquo. A depender de como é a vida da pessoa, ela tem chances de desenvolver esses problemas no período de um ano. E quanto mais episódios de depressão e ansiedade não tratados uma pessoa tem, maior a probabilidade de ela desenvolver demência ou outras alterações de memória no futuro”, diz a psiquiatra.

Uma pesquisa da USP sobre o consumo de ultraprocessados, publicada em 2022, acompanhou 10.775 indivíduos com idades entre 35 e 74 anos, incluindo homens e mulheres, por um período médio de oito anos. Eles foram submetidos a testes que incluíam o reconhecimento de palavras e fluência verbal, entre outras coisas. Ao fim do monitoramento, aqueles que comeram mais alimentos ultraprocessados, superando 19,9% de suas calorias diárias, tiveram uma taxa de declínio cognitivo 28% mais rápida do que aqueles que comeram menos produtos do gênero. No Brasil, esse grupo de alimentos, que em geral são aqueles que contêm em sua fórmula aditivos, corantes e emulsificantes não utilizados numa cozinha caseira, são responsáveis por 30% da ingestão total de calorias, segundo estudos. E esses malefícios têm se confirmado em pesquisas posteriores ao redor do planeta. 

Ana Paula ainda lembra que, em relação ao bem-estar do cérebro, o lema “diga-me com quem andas que direi quem és” tem fundamento: 

“Na prática, quem faz exercícios tende a ter um padrão alimentar melhor. Se a pessoa dedicou parte de seu tempo a uma atividade como corrida ou dança, provavelmente ela não vai querer comer qualquer coisa. Ao praticar uma atividade física, o músculo produz substâncias que aumentam a saciedade e diminuem a fissura por doce, por exemplo. E a turma com quem andamos pode influenciar nisso. Tendemos a ir para o lado daqueles que têm a ver com a gente. Como as pessoas, os hábitos também andam de mãos dadas. Os exercícios ainda melhoram a qualidade do sono. Quem dorme melhor produz menos hormônios que aumentam o apetite. Tudo está interligado.”

 

Apesar de o sono ainda não integrar a lista formulada pela Lancet sobre fatores causadores de demência, Cleusa Ferri confirma que ele já é um tema bastante presente nos debates da comissão responsável pela publicação:

“Realizamos diversas reuniões, e um grupo faz revisões sistemáticas, buscando todos os artigos internacionais sobre determinado tema. O sono aparece nas discussões, só não ainda como um fator consagrado, já que buscamos uma relação de causalidade, isto é, um elemento que de fato leve ao desenvolvimento de outra coisa. Mas é fato que esse tema se torna cada vez mais robusto e essa lista de fatores vai sendo ampliada.”

Paralelamente às inúmeras e constantes descobertas da ciência em relação a alimentos, exercícios e atitudes favoráveis à saúde mental, o contexto social e a realidade que nos circundam devem ser considerados.

“Quando falamos de alimentação que protege contra a demência, temos estudos científicos relacionados à dieta mediterrânea, cetogênica e low carb melhorando a cognição. A mediterrânea me parece mais simples, mas vivendo no Brasil a pessoa pode focar no tradicional prato brasileiro mesmo, incluindo arroz, feijão, uma proteína, uma folha verde e um vegetal. Aquilo que chamamos de comida de verdade, o mais natural possível, e que basicamente não tem aquele rótulo gigante para ler na hora de comprar. E precisamos parar de pensar no alimento que funciona como pílula mágica. Não existe brain food. Um exemplo é a história de que o chocolate 70% cacau pode ajudar por causa dos flavonoides. Mas você teria que comer uma tonelada de chocolate. Sem contar que, no processamento, vários benefícios são perdidos. Então podemos discutir que ele é mais saudável do que outros chocolates, mas não que ele vá necessariamente proteger o cérebro”, frisa a psiquiatra Ana Paula Carvalho. 

O mesmo vale para atividade física quando o foco é priorizar a saúde mental. Pesquisadores se empenham cada vez mais em descobrir os benefícios de modalidades específicas de exercícios. Resultados de um experimento elaborado pela USP e pela Unifesp com o uso de camundongos e publicado na revista Frontiers in Neuroscience, por exemplo, indicam que exercícios resistidos favorecem as funções cognitivas, a memória e são vantajosos até para os pacientes que já desevolveram Alzheimer, promovendo a produção de novos neurônios e reduzindo a deposição de peptídeo β-amiloide naqueles que já têm a doença. Seis meses de atividades com peso como musculação mostraram que a atenção e as funções executivas melhoraram, e os benefícios persistiram por doze meses após o término dos treinamentos. Mas para a prevenção de outros problemas mentais em geral, não ficar parado já é bastante importante.

“Para a proteção contra depressão e ansiedade, é importante dizer que você precisa praticar exercícios numa intensidade menor que aquela sugerida pela Organização Mundial da Saúde, que é de no mínimo 150 minutos semanais. Houve um momento em que Tai chi chuan foi bastante recomendado, depois a ioga ou a caminhada. Mas aspectos individuais precisam ser considerados. O melhor exercício é aquele que você realmente vai fazer”, simplifica Ana Paula Carvalho.

Considerar preferências e trajetórias individuais é um dos requisitos do já consolidado trabalho desenvolvido pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), pioneira na criação da Universidade Aberta da Terceira Idade (UnATI). A instituição foi fundada em 1993, alicerçada na ideia de promover ensino, pesquisa e assistência focados nas necessidades das pessoas mais velhas, com a preocupação constante de investir na capacitação e na qualificação dos profissionais que atuam junto a esse público, que é a faixa naturalmente mais afetada por limitações relacionadas ao tema. 

“A cada ano que passa, a população envelhece e o mundo se transforma. É uma realidade óbvia, mas que a sociedade tem dificuldade de encarar. Mudanças significativas acontecem na vida das pessoas e precisamos encarar que, com o aumento do tempo de vida, novas doenças crônicas e cognitivas se apresentam, com destaque para o Alzheimer. Procuramos trabalhar de um modo criativo, inovador, mas sem aquele papo de “ah, que maravilha ser velho”. Porque você vai ter perdas cognitivas mesmo, um processo neurodegenerativo”, sublinha o médico e professor Renato Veras, diretor da UnATI, agora chamada de Núcleo de Envelhecimento Humano. 

Uma sociedade que valoriza e inclui as pessoas de mais idade – em vez de jogá-las para escanteio – terá menos registro de doenças do cérebro. “A vida se ampliou. Então precisamos pensar em diferentes criações e abordagens que levem em conta a história de cada um, o contexto familiar, e não pensar em programas únicos. Só em 2024 na UnATI tivemos 52 oficinas (de mídias sociais e informática, passando por nutrição e até origami). A não valorização do idoso é condenável. É interessante colocá-los juntos, cada um com suas particularidades, e ver que eles mesmos vão encontrando caminhos para várias demandas, debatendo o que lhes interessa, desde sexualidade e perdas até questões financeiras”, pontua Renato. 

 

A geriatra Flávia Lopes, coordenadora da UnATI, lembra ainda que qualquer ação aparentemente simples que estimule o cérebro tem sua função. O crucial é que os estímulos sejam diversificados. 

“Trabalhos manuais, fazer comida, arrumar um armário… Quando estamos planejando isso, organizando, trabalhamos diferentes domínios cognitivos. Se você faz palavra cruzada ou sudoku, por exemplo, é benéfico. Mas se você só fizer palavra cruzada e sudoku, seu cérebro se acostuma. Também é indicado deixar de pegar o elevador e usar a escada ou a rampa. E outros elementos que fazem diferença: ter propósitos de vida e estar junto a pessoas queridas que nos fazem bem.”

Projetos que valorizam as relações interpessoais, como o do Núcleo de Envelhecimento Humano da Uerj, vão ao encontro de dados científicos que apontam que estabelecer laços afetivos é relevante para a manutenção não só do bem-estar físico mas também do mental. Em artigo publicado pela BBC, o escritor David Robson retoma uma série de pesquisas elaboradas ao longo das décadas, também citadas no livro que ele acaba de lançar, The Laws of Connection – The Scientific Secrets of Building a Strong Social Network (em tradução livre, as leis da conexão, os segredos da ciência para construir um círculo social forte).

Entre suas colocações, Robson lembra que em nosso processo evolutivo, os primeiros seres humanos foram adaptados a viver em grupo por algumas razões, incluindo a busca por alimentos e a proteção contra predadores. Não contar com os outros poderia significar dificuldades e até morte. O cérebro, portanto, pode ter evoluído acreditando que o isolamento social é uma séria ameaça. Por isso, a solidão gera tanta angústia. Em outro ponto do texto, ele destaca o trabalho da psicóloga Julianne Holt-Lunstad, da Universidade Brigham Young, no estado americano de Utah, que compilou a conclusão de 148 estudos sobre os prejuízos causados pela falta de conexão social. De uma forma geral, a ausência de interações na vida de uma pessoa tem efeitos mais danosos para a saúde do que o consumo exagerado de álcool, a poluição do ar, o índice de massa corporal e a falta de exercícios, sendo comparada apenas ao estrago provocado pelo cigarro.

Algumas iniciativas praticadas na Uerj ilustram como colocar a população mais velha como agente das ações pode ter um efeito positivo numa longevidade saudável, dando a eles protagonismo. 

“Nos primórdios da UnATI, quando ainda se usava pouco computador, ganhamos algumas máquinas de presente e promovemos um projeto que sugeria: ‘Aprenda informática para ensinar ao seu netinho!’ Isso teve um papel importante para empoderá-los. Eventualmente, também já levamos grupos para acompanhar peças teatrais. E uma das senhoras que sempre participava passou a fazer isso de modo frequente, a ponto de a filha dela nos ligar dizendo que não sabia o que fazer, já que contava com a ajuda da mãe para cuidar de suas crianças, mas a senhora agora estava dormindo na casa de um novo amigo toda vez que saía. Aproveitamos esse episódio para discutir situações desse tipo, para que ninguém se espante ao se deparar com esses aspectos da vida real”, exemplifica Renato, confirmando a relevância de se incentivar a integração social em qualquer fase da vida: “Promovemos ações no hall dos elevadores da Uerj, nos auditórios, e a integração acontece de uma forma natural, já que num primeiro momento a universidade é vista como um espaço para a garotada, mas que nesse caso, está repleta de idosos.”

É preciso ressaltar que, entre os fatores modificáveis para risco de demência elencados pela Lancet, a maior incidência de um ou de outro vai variar de acordo com o contexto socioeconômico e ambiental em que os indivíduos vivem. Considerando-se a realidade brasileira, tão multifacetada, macrorregiões mais ricas e pobres seriam influenciadas de modo diverso. Considerando-se raças, não há grandes diferenças, mas entre a população negra o fator que mais influenciou o resultado da pesquisa foi a educação, enquanto que para a população branca, foi a hipertensão.

“A prevenção individual é importante, mas precisamos enfatizar as intervenções de alcance populacional, que têm um efeito muito mais eficaz, já que provocam mudanças de comportamento. Para fatores como perda auditiva ou lesão cerebral traumática, por exemplo, parece mais fácil evitá-las, sugerindo que a pessoa não use um fone de ouvido com som alto durante todo o dia ou que não ande de moto sem capacete. Mas quando tratamos de diabetes, não dá pra considerar que a pessoa é diabética porque quer. E, se ela é fumante, estamos falando de dependência. Aqui vale lembrar que as muitas campanhas que fizemos no Brasil colocando aquelas imagens horrorosas nas embalagens dos cigarros e até proibindo a propaganda desses produtos geraram resultado. Em termos de custo-benefício, isso tem um alcance muito mais relevante. As pessoas precisam buscar e ter ajuda. Porque o envelhecimento é natural, mas a demência, não”, salienta Cleusa Ferri. 

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