Cena nada bíblica na Zambézia

Caravaggio pintou assim a bíblica decapitação de Holofernes, um fundamentalista religioso (diríamo-lo assim, hoje), um brutal iconoclasta ou idólatra, consoante os pontos de tomada de vista.   Após um belo fim-de-semana - que aqui narrei com detalhe -, leio a habitual enxurrada de mensagens vindas de Moçambique. Entre as quais continuo a receber filmes da recente visita do novo Presidente Chapo à Zambézia. São denotativas. Pois o partido Frelimo, para além do seu próprio aparelho, sempre usou a administração pública para mobilizar a população no acolhimento às autoridades nacionais - feriados, convocatórias aos funcionários, distribuição de benesses (roupa, comida...). Ainda assim agora - e na recepção a um novo presidente!!! - ninguém aparece. As imagens são explícitas: planos fechados, centrados em Chapo e em pequeníssimos grupos folclóricos arregimentados, grupos de militantes que não ultrapassam a dúzia de membros. É absolutamente inédito. E, simultaneamente, continuam a circular vários filmes com os monstruosos banhos de multidão que Mondlane obteve na digressão da semana passada. Tudo isto cria a sensação de uma irrealidade, quase como se peça dramatúrgica debruçada sobre uma medieval dissolução do poder, obrigatoriamente terminada em tragédia.   Mas não há qualquer irrealidade. Há uma real aproximação ao abismo. Isso é não só ilustrado como também gritado por uma série de filmes que recebo, mostrando detalhadamente um episódio deste último sábado. Em Morrumbala (capital distrital na Zambézia que Chapo visitou), em plena vila, a população decapitou um polícia ou miliciano, dito como autor de vários assassinatos políticos. O corpo jaz no meio da rua, a cabeça foi levada para um entroncamento central para que todos vejam. Consta que a polícia debandou.   As imagens mostram uma violência extrema. "Bíblica", se se quiser invocar o Antigo Testamento. Mas "contemporânea" se se quiser olhar para o mundo circundante. E será importante que estes novos políticos, que tanto parecem rezar, percebam que as rezas em excesso e a razão em falta tem sempre o mesmo resultado.

Fev 4, 2025 - 02:32
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Cena nada bíblica na Zambézia

Judith_Beheading_Holofernes-Caravaggio_(c.1598-9).

Caravaggio pintou assim a bíblica decapitação de Holofernes, um fundamentalista religioso (diríamo-lo assim, hoje), um brutal iconoclasta ou idólatra, consoante os pontos de tomada de vista.
 
Após um belo fim-de-semana - que aqui narrei com detalhe -, leio a habitual enxurrada de mensagens vindas de Moçambique. Entre as quais continuo a receber filmes da recente visita do novo Presidente Chapo à Zambézia. São denotativas. Pois o partido Frelimo, para além do seu próprio aparelho, sempre usou a administração pública para mobilizar a população no acolhimento às autoridades nacionais - feriados, convocatórias aos funcionários, distribuição de benesses (roupa, comida...). Ainda assim agora - e na recepção a um novo presidente!!! - ninguém aparece. As imagens são explícitas: planos fechados, centrados em Chapo e em pequeníssimos grupos folclóricos arregimentados, grupos de militantes que não ultrapassam a dúzia de membros. É absolutamente inédito. E, simultaneamente, continuam a circular vários filmes com os monstruosos banhos de multidão que Mondlane obteve na digressão da semana passada. Tudo isto cria a sensação de uma irrealidade, quase como se peça dramatúrgica debruçada sobre uma medieval dissolução do poder, obrigatoriamente terminada em tragédia.
 
Mas não há qualquer irrealidade. Há uma real aproximação ao abismo. Isso é não só ilustrado como também gritado por uma série de filmes que recebo, mostrando detalhadamente um episódio deste último sábado. Em Morrumbala (capital distrital na Zambézia que Chapo visitou), em plena vila, a população decapitou um polícia ou miliciano, dito como autor de vários assassinatos políticos. O corpo jaz no meio da rua, a cabeça foi levada para um entroncamento central para que todos vejam. Consta que a polícia debandou.
 
As imagens mostram uma violência extrema. "Bíblica", se se quiser invocar o Antigo Testamento. Mas "contemporânea" se se quiser olhar para o mundo circundante. E será importante que estes novos políticos, que tanto parecem rezar, percebam que as rezas em excesso e a razão em falta tem sempre o mesmo resultado.