1O Considerações sobre Terra Caída, de José Potyguara ou nem tudo que reluz é borracha...
O Blog Listas Literárias leu Terra Caída, de José Potyguara publicado pela editora Globo [Compramos esse belo exemplar de barbada na Feira do Livro de Porto Alegre]; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, ou por que nem todo Chico Bento vive na goiabeira; confira:1 - Terra Caída, de José Potyguara, poderíamos dizer, busca trazer os dilemas e conflitos do ciclo da borracha tal como Jorge Amado buscou levar a seus romances o Ciclo do Cacau. Ambientado nos grotões de um ermo Acre, no período que o ciclo da borracha entrava em declínio, o livro de fato remonta a algumas características do Romance de 30, ainda que tardio, visto que sua publicação dá-se em 1961. Todavia, essa não era ainda uma perspectiva morta, já que muitos de seus contemporâneos também trazem narrativas em que o ambiente é, na verdade, o grande personagem, diga-se, por exemplo, os sertões de Guimarães Rosa ou Mário Palmério. Com estes, potyguara, partilha o natural e seus desafios, com Amado a lascívia e a brutalidade da luta pela terra;2 - Quando falamos do ambiente enquanto personagem é porque o lugar, no caso da narrativa, que não à toa traz a terra em seu título, é de fato grande protagonista e enviesa muitas vezes o autor em vê-lo como especial condicionante do humano. O romance se passa num ermo seringal de propriedade do coronel Tonico Monteiro que com rédeas curtas e muita exploração domina os seringueiros que para além da própria miséria, precisam enfrentar um meio-ambiente hostil e mortal em suas lutas por sobrevivência; como um de seus principais personagens, Chico Bento, um migrante cearense que foge da seca para então enfrentar a floresta e as águas;3 - Aliás, Chico Bento é um personagem complexo e também contraditório. Sua fibra, tentativa de demonstração de valores morais rígidos, mas sólidos, ao mesmo tempo que falam de sua força e certa autonomia perante o coronel, um homem respeitado, na verdade, por outro lado há toda uma posição conservadora e contrarrevolucionária, um pragmático adepto do acordo que própriamente da luta, conforme veremos em determinado episódio. Todavia, se ambíguo, é justamente a ambiguidade grande produtora dos melhores personagens da literatura, e assim o é este Chico Bento cujos desafios são bem maiores que Nhô Lau furioso por suas goiabas. Além disso, destaca-se o fato de que ele, um dos protagonistas do romance, é um dos tantos que vivem a repetir a luta contra o ambiente, pois muitos dos seringueiros como ele são fugitivos da seca cearense e então passam a lutar com a floresta e as águas;4 - A bem da verdade, exemplos dos tantos pobres-diabos de nossa nação, Chico Bento e os demais seringueiros reproduzem a velha máxima popular, "se parar o bicho pega, se correr o bicho come". Na experiência familiar de Chico Bento, alcançado por uma série de tragédias no seringal, literalmente. Ocorre que os ermos do Acre, para além das margens do rio e das sedes das fazendas o centro é terra bruta, calçada num primitivismo absoluto cuja sobrevivência é primária. A natureza lhes é um perigo, assim como a relação feudal mantida para com o Coronel. Além disso, um espaço sem mulheres e homens legados à sua animalidade (aliás, interessente personagem também é Teodoro, o mais isolado entre todos) faz desse centro um lugar em que a velha máxima reosiana é experienciada diariamente, "viver é muito perigoso";5 - Quanto à aproximação com trabalhos de Jorge Amado, impossível não ver em Rosinha e Anália semelhanças com outras mulheres nas obras de Jorge Amado, isso em todas as contradições que hoje são válidas quanto a tais representações do feminino. Rosinha, por exemplo, a despeito da tentativa da narração imprimir-lhe certos ares de mulher livre e independente que rechaça o noivado com o cabloclo Nonato (que viajara com ela, do Ceará), na verdade temos o mascaramento de sua real condição de submissão a um sistema que atira-lhe à prostituição no Seringal e que leva a uma das cenas mais trágicas da narrativa. Além disso, sua real falta de liberdade é escancarada com seu desfecho autopunitivo a permanecer em meio ao ermo, mesmo depois da terra caída; Anália, outra com olhos de cigana (autores devem ter algum problema com as ciganas), carrega em si uma lascívia capitalista diferente, marcada por interesses de maior monta e junto de Tiburtino, seu esposo, numa espécie de picardia erótica buscam dar-se bem na vida;6 - Aliás, o seringal de Tonico é todo um microcosmo de um macrocosmo exploratório. O poder financeiro e político é exercido de tal forma a impedir qualquer melhoria de vida significativa a sereingueiros que precisam trabalhar à exaustão. Detalhe curioso é que se o romance aventa para o declínio da borracha e de certa forma dos coronéis, ao menos no caso de Tonico Monteiro, o sistema produtivo arcaico que feudal que fomentou esse coronolismo, não raro ainda é visto em pleno século XXI (hoje, como sempre, com boa bancada no congresso), pois estabelesse um jogo de servidão difícil de se escapar;
O Blog Listas Literárias leu Terra Caída, de José Potyguara publicado pela editora Globo [Compramos esse belo exemplar de barbada na Feira do Livro de Porto Alegre]; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro, ou por que nem todo Chico Bento vive na goiabeira; confira:
1 - Terra Caída, de José Potyguara, poderíamos dizer, busca trazer os dilemas e conflitos do ciclo da borracha tal como Jorge Amado buscou levar a seus romances o Ciclo do Cacau. Ambientado nos grotões de um ermo Acre, no período que o ciclo da borracha entrava em declínio, o livro de fato remonta a algumas características do Romance de 30, ainda que tardio, visto que sua publicação dá-se em 1961. Todavia, essa não era ainda uma perspectiva morta, já que muitos de seus contemporâneos também trazem narrativas em que o ambiente é, na verdade, o grande personagem, diga-se, por exemplo, os sertões de Guimarães Rosa ou Mário Palmério. Com estes, potyguara, partilha o natural e seus desafios, com Amado a lascívia e a brutalidade da luta pela terra;
2 - Quando falamos do ambiente enquanto personagem é porque o lugar, no caso da narrativa, que não à toa traz a terra em seu título, é de fato grande protagonista e enviesa muitas vezes o autor em vê-lo como especial condicionante do humano. O romance se passa num ermo seringal de propriedade do coronel Tonico Monteiro que com rédeas curtas e muita exploração domina os seringueiros que para além da própria miséria, precisam enfrentar um meio-ambiente hostil e mortal em suas lutas por sobrevivência; como um de seus principais personagens, Chico Bento, um migrante cearense que foge da seca para então enfrentar a floresta e as águas;
3 - Aliás, Chico Bento é um personagem complexo e também contraditório. Sua fibra, tentativa de demonstração de valores morais rígidos, mas sólidos, ao mesmo tempo que falam de sua força e certa autonomia perante o coronel, um homem respeitado, na verdade, por outro lado há toda uma posição conservadora e contrarrevolucionária, um pragmático adepto do acordo que própriamente da luta, conforme veremos em determinado episódio. Todavia, se ambíguo, é justamente a ambiguidade grande produtora dos melhores personagens da literatura, e assim o é este Chico Bento cujos desafios são bem maiores que Nhô Lau furioso por suas goiabas. Além disso, destaca-se o fato de que ele, um dos protagonistas do romance, é um dos tantos que vivem a repetir a luta contra o ambiente, pois muitos dos seringueiros como ele são fugitivos da seca cearense e então passam a lutar com a floresta e as águas;
4 - A bem da verdade, exemplos dos tantos pobres-diabos de nossa nação, Chico Bento e os demais seringueiros reproduzem a velha máxima popular, "se parar o bicho pega, se correr o bicho come". Na experiência familiar de Chico Bento, alcançado por uma série de tragédias no seringal, literalmente. Ocorre que os ermos do Acre, para além das margens do rio e das sedes das fazendas o centro é terra bruta, calçada num primitivismo absoluto cuja sobrevivência é primária. A natureza lhes é um perigo, assim como a relação feudal mantida para com o Coronel. Além disso, um espaço sem mulheres e homens legados à sua animalidade (aliás, interessente personagem também é Teodoro, o mais isolado entre todos) faz desse centro um lugar em que a velha máxima reosiana é experienciada diariamente, "viver é muito perigoso";
5 - Quanto à aproximação com trabalhos de Jorge Amado, impossível não ver em Rosinha e Anália semelhanças com outras mulheres nas obras de Jorge Amado, isso em todas as contradições que hoje são válidas quanto a tais representações do feminino. Rosinha, por exemplo, a despeito da tentativa da narração imprimir-lhe certos ares de mulher livre e independente que rechaça o noivado com o cabloclo Nonato (que viajara com ela, do Ceará), na verdade temos o mascaramento de sua real condição de submissão a um sistema que atira-lhe à prostituição no Seringal e que leva a uma das cenas mais trágicas da narrativa. Além disso, sua real falta de liberdade é escancarada com seu desfecho autopunitivo a permanecer em meio ao ermo, mesmo depois da terra caída; Anália, outra com olhos de cigana (autores devem ter algum problema com as ciganas), carrega em si uma lascívia capitalista diferente, marcada por interesses de maior monta e junto de Tiburtino, seu esposo, numa espécie de picardia erótica buscam dar-se bem na vida;
6 - Aliás, o seringal de Tonico é todo um microcosmo de um macrocosmo exploratório. O poder financeiro e político é exercido de tal forma a impedir qualquer melhoria de vida significativa a sereingueiros que precisam trabalhar à exaustão. Detalhe curioso é que se o romance aventa para o declínio da borracha e de certa forma dos coronéis, ao menos no caso de Tonico Monteiro, o sistema produtivo arcaico que feudal que fomentou esse coronolismo, não raro ainda é visto em pleno século XXI (hoje, como sempre, com boa bancada no congresso), pois estabelesse um jogo de servidão difícil de se escapar;
7 - Soma-se a isso que dentro dessa rede, o que temos é uma série de relações que se estabelecem e não raro, das intrigas, dos golpes e contragolpes que revelam certo naturalismo persistente. O próprio fato de seu herói ter de ser forte perante as tragédias pessoais evocam para a ideai dos mais fortes sobreviverem, o que de certo modo naquele mundão sem fim do centro do seringal, não o deixa de fato ser assim; todavia este mesmo naturalismo via de regra é levado às relações humanas e Potyguara em algumas de suas "declarações" da vitória da animalidade em nós é capaz de surpreender com algumas de suas soluções;
8 - Deve-se destacar ainda como o autor, nesse microcosmo busca apresentar certos tipos humanos e seus comportamentos, entre eles, talvez possamos chamara assim o muito nosso arquétipo do Capitão do Mato representado por Tomáz. Esse tipo de figura acaba desenpenhando duas funções relevantes, uma perceptível, outra nem tanto, que a bem da verdade, muitas vezes passa ao largo. A primeira, a que todos veem na superfície é o sadismo e o prazer desperto pelas "pequenas autoridades" que abusam de todos pelo simples prazer de assim o poder. Tomáz é execrável, usando de sua importância junto ao coronel, não perde uma oportunidade de explorar ou humilhar os seringueiros. Contudo, o que ninguém percebe é a segunda função e a que poucos notam, a de que este arquétipo não raro mais serve para mascarar ou nublar a real fonte da tirania e assim dissipar a fonte das revoltas, pois que, como vemos no livro, Tomáz é mal, ele é ruim, nem parece o Coronel. Eis a boa função de uma Capitão do Mato, pintar de anjo o próprio Diabo;
9 - E partindo do desfecho de Tomáz encontramos as ingenuidades ou mesmo problemas da narrativa. O destino será atroz a ele e isso soará como merecido castigo divino. É justamente aí que a coisa é mais perigosa, pois que a vida real, amigo, Tomáz bem poderia virar precisante. Há uma certeza anestesia impregnada do senso comum e errôneo de que "aqui se faz, aqui se paga". Esse lema parece imbuir toda a narrativa de Potyguara, inclusive com o destino de Tonico Monteiro ou mesmo a autopunição de Rosinha por "seus pecados". Isso no mínimo é uma esperança ingênua, alienante e por vezes perigosa. Em certo sentido, ao cabo temos um romance puro suco de centrão, que a despeito das críticas aparentes ao sistema que põe em análise, por fim atira-se a certo fatalismo resignado;
10 - Enfim, é justamente por ser controverso e por que não, problemático em algumas escolhas que Terra Caída é narrativa de importante leitura. Ainda que não seja revolucionário em suas questões, traz uma questão importante das estruturas do alicerce numa nação que vem sendo criada a partir da violência e da exploração dos probres-diabos, e esse os produzimos às tampas nessa nação que tem nas oligarquias uma força muito poderosa e opressora que às vezes está mais ou menos sob o manto da visibilidade. Uma ótima leitura para conhecermos um tanto mais desse vasto e longo continente chamado Brasil.