10 considerações sobre Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie ou descobertas raciais do Leitor Não Negro

 O blog Listas Literárias leu Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie em sua edição comemorativa de 10 anos publicada pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro ou as descobertas raciais do Leitor Não Negro, confira:1 - Sob o manto de uma desencontrada (mas até certo ponto tradicional) história de Amor, Americanah movimenta-se em direção à reflexões dialéticas da ordem racial provocada por um outro fenômeno, a diáspora contemporânea de jovens que migram de suas nações problemáticas em busca de uma nova esperança, caso tanto de Ifemelu quanto Obinze, protagonistas desse romance. Todavia, uma diáspora circular levando-os ao fim e ao princípio em um mesmo espaço enquanto o miolo de suas experiências fora de suas nações marca-lhes também de forma profunda e indelével; no caso de Ifemulu, especialmente, despertando-lhe algo ao qual não precisava despertar na Nigéria, a sua negritude e as tensas questões raciais na América;2 -  Nesse sentido, podemos dizer que o romance de Chimamanda Ngozi Adichie oferece-nos múltiplas camadas para discussão e interpretação, inclusive no que refere-se à história recente do globo terrestre. Obviamente, o fundo histórico tem a centralidade de uma narração que procura entender a identidade de seu próprio país marcado pela turbulência política, pela violência na altercação do poder, pelas estruturas sociais demarcadas pela corrupção e pelo naturalismo comportamental de sua sociedade, mas que também tem ao fundo uma das utopias recentes não concretizadas, no caso, a eleição de Barack Obama à presidência dos Estados Unidos da América;3 - Em síntese, a narrativa do livro versa acerca destes dois protagonistas nigerianos que engatam um romance muito firme na juventude, em seus tempos de escola e faculdade. Aliás, aqui um ponto importante da leitura da narrativa. Seus protagonistas se observarmos, a despeito da desesperança como o futuro, seus próprios e de seus país, situam-se numa classe média que ainda poderíamos ver como priviliegiada num país desigual como a Nigéria, condição bastante consciente, aliás, por seus personagens. É quase um tratado acerca da morte da esperança e das ilusões juvenis de seus talentos, que na obra são "forçados" a migrarem a nações que lhes ofertem futuro, Estados Unidos e Inglaterra especialmente. Assim constitui-se um romance sobre imigração, mas uma imigração distinta - e não menos problemática - da imigração motivada pelas guerras ou perseguições políticas. Nesse aspecto, Chimamanda adentra um fenômeno comum da primeira década do século XXI com uma nova fuga de povos africanos para outros lugares, novas terras e promessas;4 - Tanto Ifemelu quanto Obinze conhecerão, ainda que de modo diferentes, as implicações de serem imigrantes em novas terras. Obinze, na Inglaterra, antigo colonizador da África, enquanto Ifemelu nos Estados Unidos e seu pretenso sonho americano. Todavia, a imigração de ambos dá-se distinta de seus possíveis desejos, haja vista certa inversão: de um Obinze que imigra tardiamente e forçadamente para a Inglaterra de onde será deportado, um país ao qual sempre foi reservado, enquanto mantinha olhos brilhantes à cultura norte-americana e à sua literatura. Já Ifemelu, de natureza sempre crítica e autêntica, sempre fora reservada em relação aos Estados Unidos, mas é para onde acaba migrando conforme as possibilidades e situações apresentadas;5 - São estas duas jornadas, principiadas com o romance juvenil de ambos, atravessado pela realidade que os atira à separação e à distância que a narrativa acompanhará. Temos aqui uma narração em terceira pessoa um tanto onisciente capaz de penetrar pensamentos e emoções de ambos os protagonistas, contudo sem proporcionalidade, já que o foco acompanhará detidamente a experiência de Ifemelu, enquanto a de Obinze ganhará um pouco mais de espaço quando este está na Inglaterra. isto, obviamente não é um problema, porque se falamos de protagonismos, na verdade não seria exagero dizer que temos uma só protagonista, Ifemelu. Será ela o ponto crucial das reflexões e experiências do livro e mesmo que Obinze viva suas tragédias, nada talvez como as transformações por quais Ifemelu passará no transcorrer da narrativa;6 - Curiosamente pode parecer contraditório dizer que as tragédias de Ifemelu serão mais intensas, já que diferentemente de Obinze ela terá uma imigração considerada exitosa, afinal, "venceu" na América, conquistou sua cidadania norte-americana e em seu retorno à Nigéria acaba por vezes refletindo o estereótipo americanah, conferido às imigrantes nigerianas que regressavam com trejeitos da América. Todavia, acompanhar Ifemelu é entrarmos numa míriade de novas descobertas, sejam elas quais forem e quais impactos tragam, como por exemplo, a descoberta da racialidade e de sua própria negritude, algo que a estadia nos Estados Unidos obriga-lhe. É nos Estados Unidos que Ifemelu descobre-se negra já que na Nigéria isso não lhe era uma questão. Além disso, seu ol

Jan 19, 2025 - 22:12
10 considerações sobre Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie ou descobertas raciais do Leitor Não Negro

 O blog Listas Literárias leu Americanah, de Chimamanda Ngozi Adichie em sua edição comemorativa de 10 anos publicada pela Companhia das Letras; neste post as 10 considerações de Douglas Eralldo sobre o livro ou as descobertas raciais do Leitor Não Negro, confira:



1 - Sob o manto de uma desencontrada (mas até certo ponto tradicional) história de Amor, Americanah movimenta-se em direção à reflexões dialéticas da ordem racial provocada por um outro fenômeno, a diáspora contemporânea de jovens que migram de suas nações problemáticas em busca de uma nova esperança, caso tanto de Ifemelu quanto Obinze, protagonistas desse romance. Todavia, uma diáspora circular levando-os ao fim e ao princípio em um mesmo espaço enquanto o miolo de suas experiências fora de suas nações marca-lhes também de forma profunda e indelével; no caso de Ifemulu, especialmente, despertando-lhe algo ao qual não precisava despertar na Nigéria, a sua negritude e as tensas questões raciais na América;

2 -  Nesse sentido, podemos dizer que o romance de Chimamanda Ngozi Adichie oferece-nos múltiplas camadas para discussão e interpretação, inclusive no que refere-se à história recente do globo terrestre. Obviamente, o fundo histórico tem a centralidade de uma narração que procura entender a identidade de seu próprio país marcado pela turbulência política, pela violência na altercação do poder, pelas estruturas sociais demarcadas pela corrupção e pelo naturalismo comportamental de sua sociedade, mas que também tem ao fundo uma das utopias recentes não concretizadas, no caso, a eleição de Barack Obama à presidência dos Estados Unidos da América;

3 - Em síntese, a narrativa do livro versa acerca destes dois protagonistas nigerianos que engatam um romance muito firme na juventude, em seus tempos de escola e faculdade. Aliás, aqui um ponto importante da leitura da narrativa. Seus protagonistas se observarmos, a despeito da desesperança como o futuro, seus próprios e de seus país, situam-se numa classe média que ainda poderíamos ver como priviliegiada num país desigual como a Nigéria, condição bastante consciente, aliás, por seus personagens. É quase um tratado acerca da morte da esperança e das ilusões juvenis de seus talentos, que na obra são "forçados" a migrarem a nações que lhes ofertem futuro, Estados Unidos e Inglaterra especialmente. Assim constitui-se um romance sobre imigração, mas uma imigração distinta - e não menos problemática - da imigração motivada pelas guerras ou perseguições políticas. Nesse aspecto, Chimamanda adentra um fenômeno comum da primeira década do século XXI com uma nova fuga de povos africanos para outros lugares, novas terras e promessas;

4 - Tanto Ifemelu quanto Obinze conhecerão, ainda que de modo diferentes, as implicações de serem imigrantes em novas terras. Obinze, na Inglaterra, antigo colonizador da África, enquanto Ifemelu nos Estados Unidos e seu pretenso sonho americano. Todavia, a imigração de ambos dá-se distinta de seus possíveis desejos, haja vista certa inversão: de um Obinze que imigra tardiamente e forçadamente para a Inglaterra de onde será deportado, um país ao qual sempre foi reservado, enquanto mantinha olhos brilhantes à cultura norte-americana e à sua literatura. Já Ifemelu, de natureza sempre crítica e autêntica, sempre fora reservada em relação aos Estados Unidos, mas é para onde acaba migrando conforme as possibilidades e situações apresentadas;

5 - São estas duas jornadas, principiadas com o romance juvenil de ambos, atravessado pela realidade que os atira à separação e à distância que a narrativa acompanhará. Temos aqui uma narração em terceira pessoa um tanto onisciente capaz de penetrar pensamentos e emoções de ambos os protagonistas, contudo sem proporcionalidade, já que o foco acompanhará detidamente a experiência de Ifemelu, enquanto a de Obinze ganhará um pouco mais de espaço quando este está na Inglaterra. isto, obviamente não é um problema, porque se falamos de protagonismos, na verdade não seria exagero dizer que temos uma só protagonista, Ifemelu. Será ela o ponto crucial das reflexões e experiências do livro e mesmo que Obinze viva suas tragédias, nada talvez como as transformações por quais Ifemelu passará no transcorrer da narrativa;

6 - Curiosamente pode parecer contraditório dizer que as tragédias de Ifemelu serão mais intensas, já que diferentemente de Obinze ela terá uma imigração considerada exitosa, afinal, "venceu" na América, conquistou sua cidadania norte-americana e em seu retorno à Nigéria acaba por vezes refletindo o estereótipo americanah, conferido às imigrantes nigerianas que regressavam com trejeitos da América. Todavia, acompanhar Ifemelu é entrarmos numa míriade de novas descobertas, sejam elas quais forem e quais impactos tragam, como por exemplo, a descoberta da racialidade e de sua própria negritude, algo que a estadia nos Estados Unidos obriga-lhe. É nos Estados Unidos que Ifemelu descobre-se negra já que na Nigéria isso não lhe era uma questão. Além disso, seu olhar propõe um olhar de dentro-e-fora já que o Negro Não Americano e o Negro Americano são identidades distintas e por vezes em conflito, como veremos. Essa distinção, aliás, é que pautará seu blog (marcação temporal do romance) no qual debaterá as questões de racialidade. Aliás, a voz mais eloquente talvez de Ifemelu nos surja justamente nos trechos de publicações de seu blog em que ela adentra às feridas que sagram no que se refere às questões raciais, inclusive com bagagem teórica (mas não necessariamente acadêmica) condizente à vida estudantil e acadêmica de Ifemelu e seu círculo;

7 - Contudo, se por um lado Ifemelu alcança certos círculos e sucesso em terras americanas, não significa que a caminhada tenha sido fácil. Aliás, no momento mais tenso e dramático, a hora em que toda a sua dignidade humana é subtraída e cujo um dos reflexos é o distanciamento de Obinze que ela se inflige, destaca justamente a vulnerabilidade do feminino num mundo machista e cruel. Esse e muitos outros momentos de sua jornada a farão vergar, entretanto, talvez seu maior valor, o de vergar mas não quebrar-se. Ifemelu enfrenta as situações com força e determinação, nem sempre compreendidas, já que soará muitas vezes arrogante e pretensiosa. Mas como não o ser no mundo que lhe ataca?

8 - E talvez esteja aí suma maior virtude, a da resistência. Não uma resistência como a de seu namorado americano, Blaine, um negro professor de Yale, idealista e sempre disposto a uma passeata. Ifemelu mostra-nos uma resistência sútil e ao mesmo tempo nada sútil e bastante provocadora. E aqui entramos em uma das questões do romance, o cabelo negro e toda sua simbologia. Para quem acha que ainda seja exagero ou bobagem a importância da luta em relação aos cabelos proposta por movimentos e pessoas negras, precisa ler Americanah. Talvez assim vocês entendam a questão com maior facilidade. A grande revolução de Ifemelu não se dá em organizar protestos, se dá em não colonizar-se por meio de alisamentos perigosos e falsos. Está em compreender seu corpo e seu cabelo enquanto elementos naturais de sua identidade, e veremos que isso embora aparentemente sútil, na verdade é quase que uma declaração de guerra do primitivo insubmisso que não aceita civilizar-se aos modos do outro, esse outro, o branco europeu e seus modelos. A questão do cabelo têm muita importância na trama, tanto que boa parte da narração surge-nos em flashbacks enquanto Ifemelu está em um salão fazendo suas tranças. O cabelo de Ifemelu será tema de conversas e rejeições reforçando que não é apenas sobre cabelo, trata-se de sociologia;

9 - Além disso, Ifemelu traz-nos as resistências aparentemente imperceptíveis, como ao proteger sua linguagem. Tentará não soar como uma imigrante africana dotada de um inglês norte-americano característico. A linguagem enquanto instrumento de identidade, por isso seu inglês a não esconder sua identidade. Ao mesmo tempo, tão política (por vezes adaptável), e tão carente por entender-se e ansiada pelo que perdera. Aí voltamos ao amor. De certa forma o livro nos coloca uma nova forma de Romeu e Julieta, não proibidos de viverem suas paixões por famílias inamistosas, mas interditados pelo assassinato dos sonhos perpertrado pela própria pátria que afasta-os. Talvez encontremos aí uma nova característica da existência distópica, a da nação que não apenas mata os desejos e aspirações de suas juventudes como as impede de vivenciar o amor, como ocorre com Ifemelu e  Obinze;

10 - Mas como falamos, esta não deixa de ser uma história de amor e esperança (talvez uma esperança ampliada com Obama). O título entrega o retorno, a americanah que volta à casa. É uma casa nova, não sem problemas, talvez outros, ainda assim um Nigéria com muitos problemas. Mas apenas essa volta ao lar é que poderia viabilizar o encontro, no caso, reencontro de duas almas apaixonadas afastadas pelas políticas de um destino? Americanah é um livro fantástico pelas nuanças e pela maneira não ingênua de tratar e abordar questões complexas da natureza humana, inclusive as relacionadas à paixão. Podemos concordar ou aé discordar de certas escolhas de seus protagonistas, mas não podemos jamais negar que Ifemelu e Obinze ganham certo status de materialidade que extrapolam os limites do ficcional. Por isso e com justiça é um dos grandes romances do século. 

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