Pânico na banca
Nos últimos dois anos, depois que se formou em letras na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a rotina do professor Juliano de Lima Raposo, de 28 anos, foi corrida. Pela manhã, ele dava aulas de língua portuguesa e literatura para alunos do ensino médio de duas escolas particulares de Olinda (PE), onde mora com a família. À tarde e à noite, era ele o estudante: mal terminou a graduação, em 2022, e engatou o mestrado em letras também na UFPE. Embora boa parte das atividades do mestrado fosse online, algumas disciplinas obrigatórias eram oferecidas apenas presencialmente no período da tarde no campus da federal, em Recife. A depender do trânsito, ele precisava encarar quase duas horas de ônibus no trajeto de 15 km. No mestrado, estudou a representação do sujeito e da cultura marginalizada nos contos do escritor carioca Marcelo Moutinho. “Esse tema é uma ramificação do meu TCC [trabalho de conclusão de curso], que fala sobre literatura marginalizada, literatura periférica, aquela literatura que não tem tanta visibilidade de maneira canônica, dentro das escolas, dentro da sala de aula”, explica Raposo. A banca de defesa da dissertação foi marcada para 20 de dezembro, às 15 horas, por meio do aplicativo de videochamadas Google Meet, uma vez que um dos três avaliadores atua no Rio Grande do Sul. The post Pânico na banca first appeared on revista piauí.
Nos últimos dois anos, depois que se formou em letras na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a rotina do professor Juliano de Lima Raposo, de 28 anos, foi corrida. Pela manhã, ele dava aulas de língua portuguesa e literatura para alunos do ensino médio de duas escolas particulares de Olinda (PE), onde mora com a família. À tarde e à noite, era ele o estudante: mal terminou a graduação, em 2022, e engatou o mestrado em letras também na UFPE. Embora boa parte das atividades do mestrado fosse online, algumas disciplinas obrigatórias eram oferecidas apenas presencialmente no período da tarde no campus da federal, em Recife. A depender do trânsito, ele precisava encarar quase duas horas de ônibus no trajeto de 15 km.
No mestrado, estudou a representação do sujeito e da cultura marginalizada nos contos do escritor carioca Marcelo Moutinho. “Esse tema é uma ramificação do meu TCC [trabalho de conclusão de curso], que fala sobre literatura marginalizada, literatura periférica, aquela literatura que não tem tanta visibilidade de maneira canônica, dentro das escolas, dentro da sala de aula”, explica Raposo. A banca de defesa da dissertação foi marcada para 20 de dezembro, às 15 horas, por meio do aplicativo de videochamadas Google Meet, uma vez que um dos três avaliadores atua no Rio Grande do Sul.
Uma semana antes, a página da UFPE divulgou a banca entre as atividades acadêmicas previstas. Foram apresentados os dados básicos: data e horário da defesa, nome do aluno, título da dissertação, resumo, palavras-chave e os nomes dos três membros da banca: o presidente, professor Ricardo Postal, do Departamento de Letras da UFPE, orientador do trabalho e ex-orientador do TCC de Raposo; professora Imara Bemfica Mineiro, também das Letras da UFPE; e o professor Daniel Conte, professor da Universidade Feevale e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A publicação trazia ainda o link para a reunião agendada no Google Meet, um procedimento de praxe no caso de bancas remotas.
Raposo selecionou alguns amigos e familiares para assistirem à sua defesa. A videochamada começou no horário certo. Sentado em frente ao computador, de óculos e vestindo uma camisa clara de mangas curtas, tendo ao fundo uma estante de livros, ele apresentou com tranquilidade o resultado de sua pesquisa por cerca de 40 minutos. Em seguida, teve início a arguição da banca. Quem primeiro tomou a palavra foi Daniel Conte. No momento em que fazia uma observação crítica sobre a falta de uma cartografia literária na dissertação, foi interrompido bruscamente por um participante da reunião online. “Licença… licença, Daniel, mas se você acha tão ruim o trabalho dele, por que você não [inaudível] no lugar dele?”, dizia uma voz anasalada, aparentemente feminina. A foto de perfil que aparecia na tela era de uma mulher com um celular na mão.
O professor respondeu que não entendeu, mas o participante insistiu na bronca. Conte então levantou o tom de voz: “Querida, eu estou numa banca e eu estou no meu lugar de fala agora.” Uma outra participante da chamada, com a câmera desligada, interveio: “Só porque o Juliano é gay, que preconceito é esse?” O professor abriu os braços, indignado: “Que é isso?” Enquanto a situação se desenrolava, Raposo olhava para a tela atônito, procurando identificar quem estava falando, e perguntou ao orientador: “Professor, quem são essas pessoas?”
Surpreso, o aluno afirmou que aquelas vozes não eram de conhecidos seus. O professor Ricardo Postal respondeu que achava que eram seus convidados e a professora Imara Mineiro sugeriu então abrir outra sala de reunião. Raposo reforçou que mandou o link para pessoas específicas e passou a ler os nomes que pulavam na tela: “Daniele eu não conheço. Não sei quem é Daniele”. Os invasores começaram a ser bloqueados, um a um. Uma última voz, com foto de mulher, ainda se dirigiu a Raposo: “Seu safado, foi você quem passou o link.”
Expulsos os intrusos, a banca foi retomada e, ao final, Raposo recebeu o título de mestre.
Raposo se recorda do episódio como aquela “palhaçada”. “Mandei [o link], de maneira bem contada, para apenas quatro pessoas. E são pessoas de minha extrema confiança.” Ele lembra que chegou a perceber a presença de pessoas estranhas na videochamada, mas imaginou que fossem convidados de algum professor, como orientandos com linha de pesquisa semelhante. “Na hora eu fiquei sem reação. Estava acompanhando o que o professor (Conte) estava falando, anotando os pontos que eu poderia ajustar, e quando a pessoa se coloca eu fico: ‘Peraí!, tem alguma coisa errada aqui’, mas já era tarde demais.”
Como presidente da banca, cabia ao professor Postal controlar o acesso à reunião – o Google Meet tem uma antessala onde os convidados aguardam a autorização para entrar. “Até aquele dia, eu sempre deixava entrar quem solicitasse, supondo que fossem convidados do mestrando”, afirma o professor, por e-mail. Quando percebeu que se tratava de uma invasão, ele conta que conferiu com Raposo quem eram seus convidados e bloqueou os demais. “No dia do fato, comuniquei à coordenação do Programa de Pós-Graduação em Letras para que fossem pensadas medidas para garantir ainda mais segurança nas defesas online. Comunicamos à Comissão de Autoavaliação do mesmo programa para que também pensassem em protocolos de segurança”, completa.
A coordenação do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPE informou à reportagem que os links das defesas “não são publicizados em redes sociais, mas cadastrados no sistema acadêmico da Universidade”. “Nunca houve situações assim antes no programa, mas, diante da proporção que este tomou, o assunto será levado para discussão no colegiado de modo a serem implementados procedimentos ainda mais rígidos em relação a cuidados para evitar estas invasões”, continua a nota.
Mas, então, o que aconteceu?
A banca de defesa de Raposo foi alvo de uma invasão de trolls, jargão da internet para designar usuários (na maioria das vezes anônimos) que se comportam de maneira a provocar e insultar outras pessoas no ambiente virtual, seja em redes sociais, fóruns ou reuniões. Durante a pandemia de Covid, na medida em que aulas, reuniões, apresentações e até cerimônias religiosas passaram a ser realizadas online, os repetidos casos de invasões de trolls em videoconferências ganharam um nome: zoombombing, em referência ao Zoom, plataforma que se tornou sinônimo de videochamada a partir de 2020. Há diversos registros do tipo no Brasil, inclusive em bancas de TCC e mestrado, e geralmente as ações se pautam pela divulgação de imagens e mensagens pornográficas, racistas, misóginas e homofóbicas, seja por vídeo, áudio ou no chat da reunião.
A cientista social Clarice Tavares, coordenadora de pesquisa do InternetLab, um centro de pesquisa independente sobre direito e tecnologia, explica que um ataque troll é uma tentativa de desestabilizar as conversas no ambiente virtual, não necessariamente com uma “mensagem-fim”: o fim é desviar o foco para o próprio comportamento troll. “Quando a gente olha comportamentos trolls em diferentes plataformas, seja entrar em vídeos ou em redes sociais, o que parece é que a intenção é sequestrar o debate. As pessoas estão ali conversando sobre um tema ‘x’, e a ação do troll é voltada para fazer com que aquele tema não possa mais ser discutido e que o debate se altere completamente”, analisa.
O susto durante a defesa de sua dissertação de mestrado seria só um problema localizado, restrito à vida de Raposo e à universidade, não fosse outra ação dos trolls na internet, amplificada pela sede de cliques de perfis de humor e páginas de notícias. No dia 8 de janeiro, quase três semanas após a banca, Raposo começou a receber mensagens de amigos: um vídeo editado com um recorte da invasão estava viralizando nas redes sociais. Um trecho de cerca de 1 minuto e 30 segundos mostra desde a primeira interrupção até o momento em que surge a mensagem na tela: “Alguém removeu você da reunião”, o que demonstra que um dos invasores foi o responsável por gravar o trecho. Esse é o único registro em vídeo da banca. Raposo e a universidade contam que não estavam gravando a sessão.
A primeira postagem do vídeo identificada pela reportagem foi feita no dia 30 de dezembro por um perfil no TikTok com cerca de 11 mil seguidores (no momento da publicação deste texto, continuava lá). A página traz recortes de invasões em outras videoconferências, como reuniões religiosas, aulas e até mesmo uma entrevista de emprego. Uma postagem do mesmo perfil, mas em sua conta no Instagram, datada de 22 maio de 2024, informa que o “grupo” está com vagas abertas para quem quiser participar de outras invasões, bastando mandar o número de telefone por mensagem direta.
No X (ex-Twitter), o primeiro registro do ataque à banca de Raposo é de um perfil anônimo com menos de 300 seguidores. Como a postagem foi posteriormente deletada, não é possível identificar data e horário. O texto da publicação dizia, erroneamente e em tom ofensivo, que se tratava de uma apresentação de TCC, e que o aluno foi reprovado. Na manhã do dia 8 de janeiro, a publicação foi repostada por dois perfis do X especializados em subcelebridades, divas pop e memes que, somados, ultrapassam 1 milhão de seguidores. Foi como acender um rastilho de pólvora.
No mesmo dia, o portal Metrópoles publicou o vídeo em suas redes sociais, com link para uma notícia no site. Sob o chapéu “Viralizou”, o título da notícia dizia: Vídeo: Banca de mestrado é invadida, gera confusão e viraliza na web. Diversos perfis de notícias e curiosidades republicaram a história e o vídeo e Raposo começou a pedir a remoção. “Eu fui entrando em contato com algumas páginas, algumas foram realmente educadas e retiraram o vídeo do ar. Já outras não me responderam e o conteúdo está lá até agora”, diz. Até alunos das escolas onde ele dá aula o ajudaram na tarefa de escrever para os perfis.
Como era de se imaginar, os comentários nas publicações que ainda permanecem online vão dos emojis de riso e “kkkkk” até acusações de que foi ele quem vazou o link de propósito, passando por mensagens agressivas e referências à sua orientação sexual. Outros comentários, porém, são solidários e o parabenizam pela aprovação. “Foi um balde de água fria no momento que estava acontecendo minha defesa e um balde de água fria depois, quando aconteceu tudo isso”, lamenta.
Para Raposo, a maior preocupação era de que a viralização do trecho pudesse ter alguma consequência acadêmica ou profissional, já que procura ser reservado nas mídias sociais. “O mestrado é tão tenso que quando você vai defender (a dissertação), você pensa: vou tirar toda essa tensão das minhas costas e ficar livre quando tirar o título. Mas parece que ficou pior”, diz. Ele ainda está avaliando como levar isso adiante em âmbito judicial para tentar encontrar as pessoas que estão por trás da invasão. “Isso é um crime. Invadir uma defesa pública de mestrado pode trazer várias consequências. Não foi o meu caso, mas vai que acontece com alguém. Dois anos de trabalho, dois anos de empenho serem jogados fora por causa de pessoas totalmente inconsequentes.”
Com a viralização do vídeo, a imagem do professor Daniel Conte se espalhou pela internet em um trecho recortado e descontextualizado de sua arguição – críticas à dissertação, como ele fazia no momento, são parte natural do rito acadêmico. “Aqueles que veem o vídeo não sabem se eu já tinha falado antes ou o que eu ia falar depois”, observa. Na avaliação dele, que é coordenador do programa de pós-graduação em Processos e Manifestações Culturais da Universidade Feevale, em Novo Hamburgo (RS), o trabalho de Raposo era bom, focava um objeto interessante e o aluno se saiu bem na apresentação.
Conte classifica a invasão, e a posterior viralização, como “abjeta e nojenta”. “É um conjunto de idiotas que não têm o que fazer. Um conjunto de pessoas que entendem liberdade, que entendem democracia como uma liberdade narcísica, como uma ordem estúpida da existência, falam o que querem, atingem as pessoas do jeito que querem e usam esses outros para construir uma narrativa que eles acham engraçada. E o conjunto de parvos que contempla o vídeo e concorda com eles também é assustador”, analisa.
A consequência imediata para Conte foi desativar o Instagram pessoal. De um dia para o outro, ele recebeu mais de 2 mil solicitações de desconhecidos para segui-lo por lá. “Eu não me sentia mais seguro no Instagram. É uma coisa minha, eu exponho ali meu modo de ver o mundo, tem fotos dos meus filhos. Quando eu vi aquela quantidade de pessoas pedindo para me seguir, e eu não conhecia nenhuma delas, eu fiquei com medo.” Com a volta às aulas, ele pretende avaliar junto à Feevale que ações judiciais poderá tomar. “Acho entristecente, essa é a palavra. Porque não é uma tristeza, é uma estrutura que faz com que a gente entre numa espiral de tristeza.”
Orientador de Raposo e presidente da banca, Ricardo Postal conta que nos últimos dias muitos amigos e conhecidos viram o vídeo e o procuraram para saber o que tinha acontecido. Ele levanta um detalhe que não está presente no recorte do vídeo que circula nas redes. “As pessoas que invadiram a sala editaram o vídeo que fizeram, não mostrando quando fizeram xingamentos a Juliano, por exemplo. A situação foi bem ruim e a exposição, pior ainda”, afirma.
Em 2021, o InternetLab publicou um guia para jornalistas e criadores de conteúdo com orientações sobre como se comportar diante de ataques online e ações coordenadas de trolls. Uma das funções descritas pelo guia é oferecer ferramentas para permitir “identificar, responder e falar sobre ataques online de forma consciente dos riscos envolvidos, sem se tornarem agentes de amplificação dos efeitos dos ataques, de desinformação ou da narrativa de trolls”. Isso porque, afinal, o grande intuito dos trolls é amplificar sua ação. Para ilustrar a situação, Clarice Tavares, do InternetLab, recorre a uma máxima dos primórdios da internet: “Don’t feed the trolls”, ou seja, “não alimente os trolls”.
A pesquisadora lembra que, com as ferramentas tecnológicas hoje disponíveis, é possível identificar os autores dos ataques, especialmente se a ação envolve ofensas criminalizadas ou denúncias que podem ser feitas em delegacias especializadas, como no caso da Delegacia da Mulher. “A violência online é violência e merece resposta”, diz. Mesmo assim, ela reconhece a dificuldade de estabelecer as fronteiras entre a “brincadeira” e o crime. “Esses limites entre o que é violência e o que é liberdade de expressão, o que é violência e o que é piada ainda estão dentro de todo esse jogo de disputa, então existe um desafio para a gente enfrentar por muitos anos. Ainda não há uma resposta fácil de como se compreende essa violência.”
Apesar de todo o aborrecimento por que passou nas últimas semanas, Raposo se diz aliviado ao pensar que a mesma dinâmica que fez com que sua imagem viralizasse em uma situação constrangedora vai permitir que muito em breve aquilo tudo também caia no esquecimento. “Tudo hoje é tão efêmero, tudo é tão rápido que as pessoas veem, alimentam aquilo lá por alguns segundos e esquecem. Ainda bem. Isso é um aspecto positivo.” Depois da ressaca do caso, o plano é continuar a carreira acadêmica em um doutorado, mas por enquanto Raposo só quer dar um tempo.
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