Os efeitos da desigualdade no Brasil agravam a mortalidade materna

De acordo com o Ministério da Saúde, mulheres negras e que vivem em comunidades carentes são as principais vítimas

Jan 19, 2025 - 13:18
Os efeitos da desigualdade no Brasil agravam a mortalidade materna

A mortalidade materna é evitável. Fatores como o acesso limitado a cuidados médicos de qualidade, falhas no pré-natal, complicações durante o parto e a falta de um atendimento mais humanizado às gestantes contribuem para um aumento inaceitável de casos e deterioração da saúde pública.

A meta do Brasil para reduzir a mortalidade materna até 2030 é um compromisso firmado por meio dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Organização das Nações Unidas (ONU). O país pretende alcançar, até lá, um máximo de 30 mortes a cada 100 mil nascidos vivos. Entre as iniciativas do governo, está a Rede Alyne, programa do Ministério da Saúde que visa reduzir em 25% a mortalidade materna até 2027.

Dados de 2022 mostram uma razão de mortalidade materna de 57,7 a cada 100 mil nascidos vivos, superior ao limite definido nos ODS. No caso das mulheres negras, a situação é ainda mais grave, a mortalidade materna chegou a 110,6, um índice quase duas vezes superior ao geral. Como resposta, o governo estabeleceu uma meta de reduzir a mortalidade em 50% entre mães negras até 2027.

Doenças como a hipertensão, que poderiam ser controladas com medidas preventivas, são uma das principais causas de mortes maternas no Brasil. A enfermidade é mais prevalente na população negra por questões genéticas, mas a falta de acesso a acompanhamento adequado agrava a situação. Casos simples poderiam ser tratados sem necessidade de medicamentos, caso as gestantes tivessem acesso à informação e aos cuidados básicos.

Conforme dados dos Ministérios da Saúde e da Igualdade Racial, a mortalidade materna por hipertensão aumentou 5% entre mulheres negras no período de 2010 a 2020. Além disso, hemorragias e infecções se destacam entre as mortes evitáveis, cuja letalidade poderia ser sensivelmente reduzida com o pré-natal adequado. O acompanhamento serve para detectar e tratar doenças maternas e fetais.

"O número de óbitos maternos registrados no Brasil em 2020 e 2021 apresentou um crescimento considerável em comparação aos anos anteriores, relacionado ao período da pandemia de covid-19. Durante a pandemia, houve um colapso nos serviços de saúde, comprometendo a assistência pré-natal, o parto e o período pós-parto. Além disso, fatores, como a necessidade de isolamento social e questões socioeconômicas também dificultaram o acesso aos serviços de saúde", afirma o Ministério da Saúde, por meio de nota enviada ao Correio.

Em um corte racial, de acordo com os dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) do Ministério da Saúde, a população de mulheres pardas são as maiores vítimas. Os últimos dados apontam que, em 2023, 704 mulheres pardas perderam a vida em decorrência de complicações na gestação. Entre as mulheres brancas o número de óbitos foi de 389. Já as pretas somam 143 vítimas fatais.

A diferença entre os hospitais públicos e privados também foi relevante. Em 2023, 754 gestantes faleceram em estabelecimentos públicos, enquanto 456 mulheres morreram nos hospitais privados. No total, morreram 1.292 mulheres no Brasil.

óbito materno 1901
óbito materno 1901(foto: Lucas Pacífico)

Rede Alyne

Inspirado na história de Alyne da Silva Pimentel Teixeira, o Ministério da Saúde reformulou o programa de atenção materna, que passou de Rede Cegonha para Rede Alyne. No dia 11 de novembro de 2002, Alyne, com seis meses de gestação e mãe de uma criança de cinco anos, deu entrada em uma unidade de saúde de Belford Roxo (RJ) após se sentir mal. Sem exames ou ultrassonografia, Alyne foi mandada para casa com a receita de um remédio. Dias depois, com o estado de saúde piorado, retornou ao local e foi constatado que o bebê havia morrido.

Após horas de espera, o parto foi induzido para retirada do feto do útero, mas não houve sucesso. Ainda passando mal, Alyne precisou ser transferida para o Hospital Geral de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. Devido à falta de ambulâncias, a remoção durou 8 horas. Durante todo o tempo de espera, a família não pôde visitá-la.

No dia 16 de novembro de 2002, Alyne faleceu. A autópsia determinou hemorragia digestiva como causa da morte. Após o óbito, a mãe da vítima foi informada pelos médicos da unidade de Nova Iguaçu que a morte deu-se em decorrência do tempo que o feto morto ficou dentro do útero. De acordo com o Ministério da Saúde, o caso Alyne Pimentel se tornou um símbolo das desigualdades e da luta por direitos para mulheres no país.

Em novembro de 2007, a família de Alyne entrou com uma ação no Comitê pela Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Cedaw) da Organização das Nações Unidas (ONU). Após quatro anos, o organismo condenou o Brasil por não prestar atendimento adequado, determinou a indenização da família e recomendou políticas para melhoria dos atendimentos a gestantes no serviço público.

Doze anos após o caso, em 2014, o governo federal reconheceu a responsabilidade do Estado pela morte e indenizou a mãe da vítima pela negligência.

O programa

Anunciado em setembro de 2024, o programa Rede Alyne promete mais recursos e integração da rede de saúde pública, de forma a garantir que gestantes não tenham que peregrinar em busca de atendimento. O novo financiamento inclui um custeio mensal para ambulâncias destinadas à transferência de gestantes e recém-nascidos em estado grave. Com base no número de nascidos vivos por macrorregião de saúde, serão aportados R$ 50,5 mil para cada ambulância do tipo USA (Unidade de Suporte Avançado).

Além disso, foi prometida uma distribuição mais equitativa dos recursos, buscando reduzir desigualdades regionais e raciais. Para 2025, o investimento total no programa deve chegar a R$ 1 bilhão.

Entre as ações do programa, está o aumento do repasse federal para exames pré-natal, que passa de R$ 55 para R$ 144 mensais por gestante. Além disso, segundo a pasta, o projeto contará com recursos do Novo PAC para a construção de 36 maternidades e 30 Centros de Parto Normal, somando R$ 4,85 bilhões em investimentos. Em todo o país, 30 milhões de mulheres deverão ser beneficiadas, especialmente nas regiões com maiores índices de mortalidade.

O ministério também destaca outro modelo de assistência para gestantes de risco, chamado Método Canguru. "Consiste em colocar o bebê em contato com o corpo dos pais proporcionando benefícios, como estímulo ao aleitamento materno, estabilização térmica e melhoria da comunicação entre família e equipe de saúde."

Incidência

A Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) aponta que, diariamente, cerca de 830 mulheres morrem por complicações relacionadas à gravidez ou ao parto em todo o mundo. Em 2015, foram registradas 303 mil mortes, a maioria absoluta em países de baixa renda. Nas áreas rurais e comunidades carentes, a mortalidade materna é ainda mais elevada, demonstrando que as condições socioeconômicas influenciam diretamente nas taxas de mortalidade.

O presidente da Comissão Especializada em Perinatologia da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo), Conrado Coutinho, explica que as altas taxas de mortalidade materna entre mulheres negras estão relacionadas às desigualdades socioeconômicas e ao racismo estrutural. Essas mulheres geralmente residem em áreas de menor poder econômico, com acesso mais limitado a serviços de saúde. Como consequência, apresentam maiores taxas de internação por complicações relacionadas ao aborto, iniciam o pré-natal mais tardiamente e têm menos vínculo com a maternidade onde darão à luz, fatores que contribuem para as taxas elevadas de óbito.

"Essas disparidades não podem ser atribuídas à cor da pele, mas sim, às diferenças socioeconômicas entre os grupos", disse.

A ginecologista e obstetra Camila Pinheiro complementa que a falta de acesso é um dos principais fatores. "As mulheres negras são grande parte da sociedade que utiliza o Sistema Único de Saúde (SUS), não têm plano de saúde e não conseguem tratamentos adequados. O racismo estrutural é tratar pessoas negras como se não precisassem desse acesso, dificultando cada vez mais", destaca. A médica reforça que é necessário melhorar as condições de saúde, emprego e políticas públicas voltadas para a pobreza, a fim de proporcionar saúde como um bem comum a todos. A mortalidade materna é uma tragédia evitável.

*Estagiárias sob a supervisão de Michel Medeiros