«Obrigavam-me a roubar para não morrer»: refugiados em Portugal, o futebol da salvação
O estômago adormece esfomeado. No escuro, Kelvin conta as estrelas e perde a consciência. Sonha com o paraíso da paz, da segurança. Da comida.
Na mochila resta um pacote de bolachas. Um patético nutriente para quem busca a epopeia da salvação. O adolescente ainda não sabe, mas esse pedaço de céu está só do outro lado do Mediterrâneo, a escassos milhares de quilómetros.
Uma pequena provação para quem, em poucas semanas, atravessa três países a pé e embarca num voo doméstico munido de um passaporte falso.
Das garras da Serra Leoa, Kelvin Kamara escapa através da Guiné Conacri, da Guiné-Bissau e do Senegal. Viagem tenebrosa e solitária, mas o único antídoto para o elixir mágico: a sobrevivência.
Desorientado, «e profundamente assustado», Kelvin perde o rumo ao mapa mundi. «Saí do avião e corri para o mato, tinha medo de ser apanhado pelo gangue de Freetown.»
Rodeado de selva, as portas do inferno são um convite. Inevitável. Para onde seguir? As bocas dos demónios fazem-se escutar, entre sussurros e berros esganiçados. «Pensei voltar para trás, mas isso significava morrer. Por isso procurei o mar.»
Fragilizado, disposto a tudo, Kelvin suborna com uns míseros trocados o mais truculento dos piratas. Compra um lugar numa nau condenada à tragédia. Até hoje não sabe como está vivo para contar.
«Nas duas primeiras tentativas, o barco virou e caímos todos à água», relata Kelvin Kamara, 19 anos, sentado num banco de jardim em Vila Verde, Minho, Portugal. O zerozero escuta-o, observa-lhe o olhar sagaz, embora em sossego.
«Tive forças para nadar até à costa, outros não sobreviveram. Da terceira vez, passámos cinco ou seis dias no mar [Mediterrâneo], até a marinha da Turquia nos apanhar, perto de Izmir.»
Kelvin liberta-se das profundezas do sofrimento. Encontra em Portugal uma janela de esperança, uma porta de consolo e amparo. É avançado do GDCR Lanhas, na AF Braga, e um artista. Pinta, compõe música, canta e dança hip hop.
«O meu nome artístico é Whaley. A pensar nas baleias. Foi na água salgada que renasci.»
«Desde 2021 já conseguimos empregar mais de 50 refugiados»
Nos últimos dez anos, oito mil refugiados são acolhidos em Portugal. Gente em fuga da miséria, da dor, da violência. Recebem medidas de proteção estatais, são monitorizados pelos tribunais e ajudados por organizações humanitárias.
A Social Innovation Sports (SIS) e a Adolescere são duas dessas fundamentais associações. É através delas, de resto, que esta reportagem nasce, cresce e vê a luz definitiva.
André Ries, da SIS, traça um cenário preocupante, mas de esperança. Não há monstros marinhos, aberrações bíblicas, tampouco missionários do Mal. Apenas seres humanos.
«Em 2024 passaram 150 pessoas pela SIS, entre refugiados, imigrantes e outras pessoas com determinado tipo de vulnerabilidade», resume, certo de que «a empregabilidade» e a «inclusão desportiva» são fatores determinantes para uma adaptação bem-sucedida.
«Desde 2021 já conseguimos empregar mais de 50 pessoas em processos de recrutamento e o desporto é essencial para eles se sentirem em casa.»
Do Afeganistão, Aziza Zada e Maryam Karimyar, já nada esperam. Pelo menos deste Afeganistão ministrado por talibãs e políticas extirpadas ao mundo das trevas. Um anacronismo intolerável.
Aziza tem 19 anos e a fuga da terra-natal bem presente. Com Cabul invadida, a menina foge para Mazar-e-Sharif e subsiste 20 dias numa «casa segura», lado a lado com mais 25 colegas de equipa. Futebolistas amedrontadas, desesperadas. Em Esposende reaprende a viver.
Maryam é mais nova, apenas 17 anos. Ainda recupera de uma perda recente. O tio é assassinado, sem julgamento, e apenas pelo crime de ser familiar de uma menina jogadora de futebol. As sub17 do Famalicão são a sua nova casa.
Vidas reais, três vidas reais. Sem realismo mágico, efabulações ou hipérboles caricaturais. Um homem da Serra Leoa, duas mulheres do Afeganistão, unidos apenas por dois elos pessoais e intransmissíveis: o amor pelo futebol e a missão pela sobrevivência.
Kelvin, Aziza e Maryam, refugiados em Portugal e salvos pelo futebol. Querubins apátridas, filhos de um deus qualquer.
Pessoas.
O estômago adormece esfomeado. No escuro, Kelvin conta as estrelas e perde a consciência. Sonha com o paraíso da paz, da segurança. Da comida.
Na mochila resta um pacote de bolachas. Um patético nutriente para quem busca a epopeia da salvação. O adolescente ainda não sabe, mas esse pedaço de céu está só do outro lado do Mediterrâneo, a escassos milhares de quilómetros.
Uma pequena provação para quem, em poucas semanas, atravessa três países a pé e embarca num voo doméstico munido de um passaporte falso.
Das garras da Serra Leoa, Kelvin Kamara escapa através da Guiné Conacri, da Guiné-Bissau e do Senegal. Viagem tenebrosa e solitária, mas o único antídoto para o elixir mágico: a sobrevivência.
Desorientado, «e profundamente assustado», Kelvin perde o rumo ao mapa mundi. «Saí do avião e corri para o mato, tinha medo de ser apanhado pelo gangue de Freetown.»
Rodeado de selva, as portas do inferno são um convite. Inevitável. Para onde seguir? As bocas dos demónios fazem-se escutar, entre sussurros e berros esganiçados. «Pensei voltar para trás, mas isso significava morrer. Por isso procurei o mar.»
Fragilizado, disposto a tudo, Kelvin suborna com uns míseros trocados o mais truculento dos piratas. Compra um lugar numa nau condenada à tragédia. Até hoje não sabe como está vivo para contar.
«Nas duas primeiras tentativas, o barco virou e caímos todos à água», relata Kelvin Kamara, 19 anos, sentado num banco de jardim em Vila Verde, Minho, Portugal. O zerozero escuta-o, observa-lhe o olhar sagaz, embora em sossego.
«Tive forças para nadar até à costa, outros não sobreviveram. Da terceira vez, passámos cinco ou seis dias no mar [Mediterrâneo], até a marinha da Turquia nos apanhar, perto de Izmir.»
Kelvin liberta-se das profundezas do sofrimento. Encontra em Portugal uma janela de esperança, uma porta de consolo e amparo. É avançado do GDCR Lanhas, na AF Braga, e um artista. Pinta, compõe música, canta e dança hip hop.
«O meu nome artístico é Whaley. A pensar nas baleias. Foi na água salgada que renasci.»
«Desde 2021 já conseguimos empregar mais de 50 refugiados»
Nos últimos dez anos, oito mil refugiados são acolhidos em Portugal. Gente em fuga da miséria, da dor, da violência. Recebem medidas de proteção estatais, são monitorizados pelos tribunais e ajudados por organizações humanitárias.
A Social Innovation Sports (SIS) e a Adolescere são duas dessas fundamentais associações. É através delas, de resto, que esta reportagem nasce, cresce e vê a luz definitiva.
André Ries, da SIS, traça um cenário preocupante, mas de esperança. Não há monstros marinhos, aberrações bíblicas, tampouco missionários do Mal. Apenas seres humanos.
«Em 2024 passaram 150 pessoas pela SIS, entre refugiados, imigrantes e outras pessoas com determinado tipo de vulnerabilidade», resume, certo de que «a empregabilidade» e a «inclusão desportiva» são fatores determinantes para uma adaptação bem-sucedida.
«Desde 2021 já conseguimos empregar mais de 50 pessoas em processos de recrutamento e o desporto é essencial para eles se sentirem em casa.»
Do Afeganistão, Aziza Zada e Maryam Karimyar, já nada esperam. Pelo menos deste Afeganistão ministrado por talibãs e políticas extirpadas ao mundo das trevas. Um anacronismo intolerável.
Aziza tem 19 anos e a fuga da terra-natal bem presente. Com Cabul invadida, a menina foge para Mazar-e-Sharif e subsiste 20 dias numa «casa segura», lado a lado com mais 25 colegas de equipa. Futebolistas amedrontadas, desesperadas. Em Esposende reaprende a viver.
Maryam é mais nova, apenas 17 anos. Ainda recupera de uma perda recente. O tio é assassinado, sem julgamento, e apenas pelo crime de ser familiar de uma menina jogadora de futebol. As sub17 do Famalicão são a sua nova casa.
Vidas reais, três vidas reais. Sem realismo mágico, efabulações ou hipérboles caricaturais. Um homem da Serra Leoa, duas mulheres do Afeganistão, unidos apenas por dois elos pessoais e intransmissíveis: o amor pelo futebol e a missão pela sobrevivência.
Kelvin, Aziza e Maryam, refugiados em Portugal e salvos pelo futebol. Querubins apátridas, filhos de um deus qualquer.
Pessoas.