Este país é de todos

Ninguém receava o vizinho do Bangladesh até o dia em que alguém vociferou que era ele a causa dos seus medos. Não importa se era o caso. Importa que sirva o propósito.

Jan 20, 2025 - 04:20
Este país é de todos

Passou um mês sobre a indignidade que aconteceu na rua do Benformoso, dezenas de cidadãos estrangeiros, imigrantes legais, encostados à parede a aguardar a sua vez para serem revistados, acção nunca vista ali, agentes fardados, outros de cara tapada, outros à paisana a cortar os acessos à rua. Todo um aparato operacional, com a comunicação social informada previamente para que fosse dada visibilidade à acção policial. Podiam ter sido pedidos documentos, pessoas eventualmente revistadas, mas encostar à parede todos, indiscriminadamente, apenas a percepção de que são estrangeiros racializados como critério, foi a imagem tenebrosa que se normalizaria não fosse fortemente sacudida.

No dia 11 de janeiro, milhares de pessoas saíram à rua em manifestação para dizer “Não nos encostem à parede”. Impunha-se o protesto para deixar claro que não há como conceber normalidade no sucedido. A humilhação ultrajante não ter sido levada com a gravidade devida, pelo contrário ser dada por normal, ao mais alto nível, pela ministra com a tutela e pelo próprio primeiro-ministro, exigia sobressalto e tomada de posição.

Um regime que normalize práticas destas não tem um problema de polícia, tem um problema político. Rusgas assim, em massa, encostando dezenas de pessoas contra a parede, em lugar nenhum são aplicação de um protocolo de acção sob critério técnico. Aquelas pessoas eram imigrantes legais, pessoas nos seus afazeres, que foram subitamente interrompidas na sua liberdade de movimentos, para participarem forçadamente da encenação securitária que as encostou a uma parede como uma massa anónima, cada um apenas a sua condição de imigrante. Dar o facto de a operação ser policial como um indicador da sua neutralidade política é grosseiramente falso. Sabendo que foi dado prévio conhecimento da intervenção policial à comunicação social, para que pudesse estar presente e disseminá-la, obviamente esteve em causa tornar ostensiva uma certa política securitária do Governo.

Aliás, Luís Montenegro veio dizer que é “muito importante que estas operações decorram”, não se dispensando de fazer a sua apologia. Já depois da manifestação, comentou ainda que “os extremos saíram à rua”. O comentário saiu-lhe tremendamente hipócrita, pois se milhares saíram à rua para se manifestar, acompanhados de cidadãos que se tomam por moderados, foi para recusar radicalmente a xenofobia e o racismo, a cidadania de segunda, o “nós” e o “eles”, em suma, defender radicalmente os valores constitucionais. Não os moveu o extremismo, mas a firmeza. Ao dizer que os extremos saíram à rua, Montenegro foi cúmplice de Ventura.

Na verdade, os extremos são outros. A Rua do Benformoso é animada, ninguém se sente ameaçado a descê-la até ao Martim Moniz ou a subi-la até ao Largo do Intendente. Ironicamente, o Intendente assustava mais no passado, num tempo em que não havia imigrantes do Bangladesh a residir lá. Levantar a suspeita de maior criminalidade para poder exibir mão mais pesada onde há mais estrangeiros visíveis, na rua como se estivessem em casa, a dar uma percepção de diferença, como na Rua do Benformoso ou no Largo de São Domingues, é que é extremismo, com tudo o que o extremismo tem de inaceitável.

Montenegro bem que pode apontar a Ventura extremismo, mas participa dele, com a gravidade de se disfarçar de moderado e de governar. Os extremos são, pois, outros e distam pouco um do outro, pelo menos em matéria de consequências. Ambos, associam criminalidade a comunidades estrangeiras racializadas, com a diferença de que Ventura fá-lo de forma cada vez mais explícita e berra muito, o que serve aos propósitos do governo.

Ventura associa frases, umas ao lado das outras, sem laço lógico, sem argumento, apenas associação livre, a contaminarem-se, por exemplo, uma sobre a Lei ser para todos – uma obviedade –, outra sobre a criminalidade estar a aumentar – falsa percepção, desproporcionada, a procurar o alarme social – e, finalmente, outra sobre imigrantes, sobre como são muitos, andam por todo o lado. As frases são ditas sem dizerem o que a sua sequência causal sugere. O medo preenche os vazios lógicos como uma verdade para, no fim, formar-se a conclusão grotesca: estes estrangeiros não cumprem a Lei e são causa de criminalidade.

Na manifestação do dia 11 de janeiro, houve um cartaz que se destacou. Dizia “tenho medo do medo do medo”. O seu autor foi Olivier Pourbaix, arquitecto belga, que vive há décadas em Portugal. Lembra o poema de O’Neill que fala do medo que nos faz ratos, ou a canção de Capicua em que ela canta “é muito lucrativo que o mundo tenha medo”.

Naturalmente, o medo de que não devemos ter medo não é o do perigo, que nos pode fazer mal, por exemplo atravessar uma rua sem prestar atenção aos carros que por lá passam. Esse medo é instrutivo desde que não nos paralise. O medo de que não devemos ter medo, o medo que nos torna ratos é outro, um fundo de insegurança íntima, sofrimento por excesso de desconfiança. Este medo de que não devíamos ter medo é justamente o que o populista quer explorar, pois, contando que esse medo exista na sociedade, sabe que libertá-lo é o caminho para o seu poder.

O populista não propõe politicamente um contrato, mas um pacto. Com cada um que se disponha a reconhecer-lhe autoridade na medida em que ele tenha, pela sua acção política, transformado o que era desconforto e subjugação ao medo em empoderamento à custa daqueles que servem a essa legitimação. Ninguém receava o vizinho do Bangladesh até o dia em que alguém vociferou que era ele a causa dos seus medos. Não importa se era o caso. Importa que sirva o propósito.

O migrante económico, as pessoas estrangeiras, os bairros periféricos, as comunidades racializadas, a Cova da Moura onde vivia, até ser abatido, Odair Moniz, os residentes na rua do Benformoso, onde viviam aqueles que, depois de encostados em massa à parede, passarão a ter um estigma caso não afirmemos peremptoriamente a indignidade do sucedido, nenhum de todos estes é motivo de medo, todos são pretexto.

Numa espécie de contra-manifestação à manifestação do dia 11 de janeiro, André Ventura disse “Se eles são pedófilos, se eles são traficantes, se eles forem ilegais, se eles assediarem e perseguirem as mulheres, se eles traficarem droga, se eles derem cabo da nossa vida e dos nossos valores, encostem-nos à parede, uma e outra e outra vez, até perceberem que este país é nosso e que a lei é para cumprir em Portugal”. O exercício retórico é cobarde, pois deixa apenas subentendido o que não é capaz de afirmar cabalmente, mas que diz com todas as letras. Formula uma condicional “se isto, então aquilo”. Obviamente, não se verificando nenhum “se”, não se seguiria nenhum “então”.

Na lamentável rusga de 19 de dezembro, o resultado de todo o aparato foi ridiculamente desproporcionado. Mas o que importa ao “se” é libertar o “então” – “encostem-nos à parede até perceberem que este país é nosso e que a lei é para cumprir em Portugal!”. A frase faz a apologia a violência selectiva, dirigida aos estrangeiros, àqueles que têm de perceber que este país não é deles, e que têm de ser encostados à parede até perceberem, sofrer essa violência, que não tem que ver com mais nada senão não serem deste país, que não é deles. É uma afirmação xenófoba, sem margem de dúvida além do que cabe dentro do horizonte da divergência política, e que alguma autoridade deveria avaliar. A lei é para todos. Não é só para estrangeiros, imaginando-se Ventura acima dela.

Ventura tomou a manifestação do passado sábado por ilegítima. Talvez lhe custe ver que pessoas naturais do Bangladesh que vivem e trabalham em Portugal tenham integrado a manifestação, acompanhando-a com palavras de ordem. É que este país é de todos.

O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.